Trazemos a sequência do conto do integrante Antônio João Ângelo, O Livre-pensador (Josué). A quinta parte d´O Contador de Histórias.
O Estranho
Após duas semanas neste paraíso, percebi uma certa inquietação em minha mãe. Com toda a minha atenção voltada às brincadeiras, não havia observado com atenção aos acontecimentos do dia a dia.
Bem, continuaria assim até aquela noite de sábado, quando retornei da casa de Phyl. Eu caminhava imerso em pensamentos, brincando com o vapor que minha respiração provocava na atmosfera gelada. E imaginando umas mil desculpas para explicar o meu retorno aquelas horas. Quando um canto de coruja devolveu-me a fria realidade.
Eu caminho por uma antiga e estreita trilha repleta de curvas. Margeada por rochas e arbustos que sempre escondem a curva seguinte. Do céu uma lua cheia traz algum conforto à minha escuridão. Apenas com o estreito facho da minha lanterna como guia. O chão é todo coberto de folhas e farfalha a cada passo. Estremeço só em pensar no mau funcionamento da lanterna.
O silêncio é assustador, e vez por outra é interrompido pelo lúgubre canto da coruja. Após mais algumas dezenas de passos, eu diviso por entre a vegetação a iluminação da nossa casa.
Ainda a matutar sobre uma desculpa para mamãe, eu abro a porta e entro na sala. Para minha surpresa, encontro mamãe embalando Karim. Quando ela percebe a minha presença, nada fala sobre a hora, e apenas me pede para levar Karim até o seu quarto.
Então, eu carrego a pequena em meus braços e a deito em sua cama. Protejo ela com cobertores e me volto para sair do cômodo. Antes de chegar à porta, eu percebo mas do que vejo, um movimento. Estaco imediatamente, olho ao meu redor e nada encontro. Mesmo assim, sinto o estômago embrulhar.
Enquanto estou curvado sobre o lampião reduzindo a sua luz, eu sinto um olhar fixo em mim. E volto a observar o quarto com um pavor redobrado. Fixando a minha atenção sobre um velho e estropiado boneco. Ele está jogado em um canto, entre outros brinquedos de minha irmã.
Reparo pelo canto do olho, e confirmo que a porta do quarto continua entreaberta. E um medo medonho invade a minha alma. Neste momento, percebo outro movimento no aposento e fico paralisado. Mas é apenas a minha irmã, que soluçando passa rapidamente pela fresta da porta.
Ao chegarmos repentinamente na sala a nossa mãe fica assustada. E nos pergunta o que aconteceu. Após eu lhe relatar, ainda um tanto confuso, aquilo que não entendia. Ela parece ficar seriamente preocupada e acaba levando Karim ao seu próprio quarto.
Ela retorna após alguns minutos com uma pequena caixa de madeira. E senta-se ao meu lado. Quando abre a caixa, ela retira do seu interior uma antiga bíblia e a acomoda carinhosamente em seu colo.
— Filho, tem algo de muito estranho acontecendo aqui. Por três vezes a sua irmã despertou assustada em seu quarto. Quando a faço dormir e a levo até o seu quarto, ela desperta em seguida assustada.
— Mãe, não sei se vai acreditar, mas tive uma sensação ruim ao olhar um boneco da Karim. Aquele sem um olho. E ele parecia me observar.
— Olha Josué, isto não é uma brincadeira, a sua irmã parece sinceramente apavorada. Venha comigo, vamos dar mais uma olhada no quarto, talvez seja algum pequeno animal escondido.
O rangido lento estalado da porta do quarto de Karim parecia prenunciar algo bem pior que um roedor escondido. E aquele boneco feio, já não estava aonde devia. Agora estava recostado na cabeceira da cama e parecia quase humano. O seu único olho solitário parecia querer saltar da sua órbita, e tinha um brilho febril. Em contrapartida, seu outro olho era uma cavidade profunda e negra.
Fiquei todo arrepiado! Olhando aquele boneco de 60 centímetros. Ele vestia um macacão vermelho desbotado e uma camiseta encardida de cor branca com faixas horizontais pretas.
— Meu Deus, nosso senhor... —, ouvi mamãe sussurrar. — Ele parece estar rindo do nosso pavor!
Não sei até hoje, se aquele sorriso foi uma peça pregada pela nossa imaginação assustada? Ou o resultado da grotesca maquiagem realizada por minha irmã no boneco.
A sua face horrenda, alem de distorcida pela chama do lampião, possuía inúmeras pintas coloridas nas bochechas redondas. Que aliais, eu vira a minha irmã pintando naquela mesma manhã.
Os cantos de sua boca vermelha, haviam sido pintados de verde. E pareciam repuxados para cima, simulando aquele grotesco sorriso. E como se não bastasse, os poucos tufos de cabelo cor de ferrugem, ainda presentes naquela cabeça infantil, em nada ajudavam e sim, reforçava o pavor repentino que invadia nossas mentes e corpos.
Para a minha surpresa, mamãe adentrou o quarto rezando com sua bíblia. A sua voz era melodiosa, quase hipnótica. E o lugar pareceu aquietar-se com a prece.
Percebendo a minha incredulidade. Ela falou baixinho para mim.
— A palavra de Deus, Josy, tem um poder para além deste mundo. — "Josy... este era o apelido carinhoso como ela me chamava."
Algum tempo depois, nos retiramos do aposento. Parecia que tudo voltara ao normal. Mas minha mãe continuou com as suas preces, enquanto caminhamos para a sala. No corredor, encontramos a vovó. E ela, após saber os últimos acontecimentos, parecia contrariada.
— Eu lhe avisei filha, tinha mesmo um estranho na casa. Eu só não esperava algo assim. Posso ver o quarto? talvez consiga ajudar.
Dentro do quarto e sobre a cama, o boneco fazia movimentos espasmódicos, como se ainda não dominasse a anatomia daquele pequeno corpo.
A tensão no interior do cômodo era quase insuportável, ao menor ruído eu me assustava. E quase saí em debandada, quando o corpo do boneco pareceu despertar.
A minha mão desprendia uma umidade fria e o coração batia forte e rápido, embora não aquecesse o meu corpo. O som da prece de vovó era um rumor profundo e monótono. Que logo foi interrompido.
De repente, o quarto ficou subitamente encharcado com uma intensa luz branco–azulada. Até os objetos inanimados pareceram adquirir vida. E a pesada janela abriu-se com um forte e seco estalo. Pude sentir um frio gelado escorrendo ao longo da minha espinha, e minha nuca ficou toda arrepiada.
O frio noturno, estranhamente, não penetrou no ambiente. Na verdade o quarto até ficou mais quente. E através da janela algo impossível aconteceu. Não é possível enxergar a silhueta das arvores, e o céu é completamente negro e sem estrelas. Olhar através dela é despencar num abismo sem luz, um portal para o nada absoluto.
— Por favor, saiam da minha frente! — E a minha corajosa Vovó avançou através daquele mar de luz. Retira de seu pescoço fino um pesado relicário, e deste, um minúsculo frasco contendo um liquido translúcido. Enquanto isso, caminha a passos seguros e decididos em direção a aberração, enquanto reza e derrama água benta no ambiente. E, lentamente, bem lentamente, a calma retorna ao quarto de Karim.
Foi quando mamãe exclamou. — Josué, esteja atento para ajudar a sua avó. Ela está a cada passo se deslocando com mais dificuldade, parece que atravessa algo viscoso.
Tento me aproximar para ajudar, mas não consigo me mover. A força física parece não adiantar neste lugar. Apenas a fé inabalável da minha avó parece abrir um caminho. Reconheço agora, o esforço quase sobre humano de vovó enquanto ela desafia este ambiente sobrenatural.
Como se a cada passo as suas forças fossem sendo drenadas, ela foi lentamente reduzindo o seu avanço e subitamente perdeu os sentidos. Caindo com toda força no piso de madeira.
— Oh, meu Deus, mamãe! Eu não deveria ter permitido... Vou chamar agora mesmo o seu pai, Josy. Fique aqui por favor.
E eu fiquei ali plantado, no limite da porta. E tudo parecia bem calmo e tranquilo. Teria vovó conseguido vencer aquele fenômeno?
Mal tinha pensado no assunto e...
Subitamente, como se uma gigantesca represa rompesse, o quarto voltou a ficar totalmente inundado por aquela luz e sua estranha energia que fazia crepitar o ar. Desta vez até os meus cabelos ficaram de pé. Era como se para recuperar o tempo perdido com a minha avó.
Agora no centro da janela, imagens abstratas coloridas vão e vem. Nas bordas do vão da janela, como formando uma moldura, a cor é de um vermelho escuro. E as imagens projetadas no seu centro são semelhantes a projeção de um filme antigo com defeito, e em alta rotação.
Percebo então uma pesada mão pousada no meu ombro e ela me transmite conforto e segurança. Era o meu pai, e ele também pareceu ficar paralisado diante daquela cena inusitada.
Enquanto isso, o boneco movimentava os seus membros e contorcia a sua boca de plástico. Como tentando pronunciar palavras, mas só o que escutávamos era o rangido do plástico sendo torcido.
Foram apenas alguns minutos, mas que para mim, pareceram uma eternidade. Mas, foi o quanto durou o nosso estarrecimento. Meu papai foi o primeiro a se recuperar do susto, e resolveu, com passos ainda que relutantes, aproximar-se daquela entidade incorporada. E parecia que a observava fascinado e sem nenhum medo.
— Josy..., eu não compreendo! Ele parece estar chorando!
E aproxima-se ainda mais, tentando tocar em suas lágrimas.
— Não existem de verdade, filho. São apenas uma ilusão, afirma surpreso.
Como se apercebesse tocado. O boneco aquietou-se.
Então no centro do quarto, uma diáfana neblina luminosa começou a adensar-se. Aos poucos foi adquirindo um contorno humano e em seguida estendeu as suas pseudomãos para o meu pai. Ela com gestos suaves parece implorar que ele a acompanhe.
Isso mesmo, foi o que entenderam, era uma mulher aquela forma de energia. Eu percebia claramente o seu cabelo longo e movimentado por uma brisa. Ela tinha uma cintura delicada e uma altura mediana.
Parecendo em transe, o meu pai a seguiu através do quarto em direção a janela. Mas antes de alcançá-la, ele cai por terra. Neste instante, superando todo o meu pavor, eu tento socorrê-lo. Mas novamente, não consigo sair do lugar.
Apenas observo, sem nada poder fazer por ele ou minha avó.
Percebo uma tênue névoa luminosa envolver o seu corpo desfalecido e adensar-se na medida em que dele se afasta. Então, estes dois corpos luminosos levitam através do quarto em direção a janela. A janela parece agora menos ameaçadora. É apenas um fundo negro envolto nas bordas por uma leve luminosidade vermelha escura.
Após as duas silhuetas brumosas sumirem nesta escuridão, eu senti no peito uma grande paz e um aroma de flores invadiu o aposento.
Quando percebi que a limitação de meus movimentos havia desaparecido, eu e minha mãe entramos no quarto e socorremos a minha avó. Que em poucos minutos, desperta de seu desmaio.
Já a preocupação com o meu pai não termina. O seu aparente sono é algo bem mais profundo. Mas como os seus sinais vitais estão normais, resolvemos esperar um pouco.
Transferimos com a ajuda de vovô, o meu pai para a cama da minha irmã, e fomos todos para a sala de jantar. Mesmo ainda nervosos e preocupados, tomamos algumas decisões.
Devido principalmente aos conselhos da minha avó, que parecia ter uma aptidão especial para aqueles mistérios, decidimos não abandonar a casa até o sol nascer. E rezamos para que nada de mal acontecesse com papai.
Eu não parava de olhar o relógio da sala; já passava das duas da madrugada e até agora nada.
Vovó ao relembrar o que lhe contamos, parece acreditar que a segunda névoa, aquela sobre o meu pai, talvez fosse a materialização da sua alma.
– Eu não presenciei o que aconteceu – falou meu avô –, mas se for verdade? Que viagem fantástica estará ele fazendo agora, e que perguntas misteriosas não saberá responder quando retornar?
– Será que terei o meu pai de volta?
Percebo que estou soluçando e mamãe envolveu-me num abraço afetuoso, embora com lágrimas em seus olhos.
Estávamos todos reunidos na sala quando sentimos a sua presença. Corremos todos até o quarto de Karim, e lá encontramos o espectro de uma mulher no meio do cômodo.
O seu contorno agora era extremamente nítido, dava até para observar os seus dedos individualmente e as mechas de seu longo cabelo. Tanto a parte de seu corpo visível, quanto aquela encoberta por sua túnica esvoaçante, são da mesma substância e de uma brancura extrema.
Com renovado espanto, eu tomo consciência de que é um espírito feminino, aparentemente jovem e delicado. O seu rosto, com exceção dos olhos, parece permanecer em constante movimento.
Com o meu pai despertando, eu desviei minha atenção da entidade e observo com ansiedade ele recobrar a consciência. Quando finalmente está em pé, ele nos olha por alguns segundos e caminha sorrindo em nossa direção. Sai do quarto, ainda com aquele leve sorriso estampado na face, e vai até a despensa. E retorna ao quarto em seguida, trazendo o seu material de pintura. E após depositar todo o seu material sobre a cama, ele sorri e acena delicadamente para a jovem entidade.
Jamais vou esquecer as cenas seguintes. Ele tranquilamente sentado na borda da cama, e o fantasma flutuando em sua direção. Em seguida, ela ajoelha-se de frente para papai, como em prece, permanecendo de costas para nós.
Papai começa a distribuir sobre o rosto do fantasma, uma fina camada da massa branca que ele costuma usar para cobrir as telas antes de pintar. E a seguir, começa a pintar o seu rosto.
As horas vão passando lentamente, mas após certo tempo perdemos a noção das horas. Saímos por pouco tempo e voltamos para observar aquela misteriosa cena. Os dois parecem não se incomodar com o movimento e papai parece totalmente absorvido pelo estranho trabalho.
Já se passaram três horas desde que ele iniciou a sua pintura sobrenatural. E novamente de volta ao quarto, eu percebo que ele guarda o seu material de pintura. Chamo a todos, e retorno correndo.
Meu pai agora esta de pé, e sorri para nós. Ao seu lado, uma bela jovem parece brilhar por dentro e nos sorri da forma mais linda e sincera que já vi. E o seu rosto, antes uma massa sem forma e em eterno movimento, agora é algo de rara beleza. Os tons das cores de sua face parecem perfeitos e naturais. Ele é muito expressivo e belo, na realidade é o que existe de mais humano naquele corpo de fantasma.
Após alguns minutos de uma imobilidade angustiante, sem ninguém saber exatamente o que fazer. Ela volta-se para a penteadeira e senta-se diante do seu espelho e parece ficar embevecida com a imagem refletida.
Enquanto isto, papai com uma estranha entonação na voz, nos contou o porquê, deste incrível acontecimento...1
O Livre-pensador (Josué)
1 Continua na sexta e última parte d´O Contador de Histórias no IG 24, em Janeiro de 2017!