O tempo..., o tempo é um adversário perigoso e imparcial. Através dos séculos, procuramos entendê-lo usando fórmulas complicadas, poesia, meditação e até a filosofia faz parte de nosso arsenal. No entanto, uma simples e antiquada ampulheta, é mais que suficiente para defini-lo. O suave e silencioso deslizar da areia branca pelo cristal sem cor, é o rio seco do Tempo que flui com o navegar das horas".

"O tic-tac do tempo é semelhante ao movimento dos ponteiros de segundo, minuto e hora, que percorrem os dias, meses e anos de nossos olhos. A verdade é uma só: eu tenho que aceitar minha pequena eternidade como finita, preciosa e imperiosa. Apenas as lembranças de um virtuoso e rico passado serão capazes de me confortar, e, poderiam talvez, me tornar eterno na memória dos vivos......” (Josué – 13. 06. 1978).

Eleazar é o meu nome. Sou pálido, magro, e tenho o cabelo negro e espetado. Com quinze anos, sou um tanto cumprido demais. Pelo menos é o que minha mãe acha.

Estamos percorrendo a bela zona rural de Urubici, uma pequena e ajardinada cidade nos rincões do Estado de Santa Catarina, no sul brasileiro, e o ano é 1978.

Após algumas horas, aquela estrada de cascalho e barro vermelho encobriu com um fino manto de poeira as janelas do nosso carro, simulando um precoce fim de tarde. O céu é de um azul suave e brilhante, pontilhado de pequenas e delicadas nuvens brancas. E, flechando o chão da floresta, por entre copas de esguios pinheiros, os raios mornos do sol estão em toda parte, tentando sem muito sucesso, aquecer a fria manhã, enquanto avançamos aos solavancos, nesta silenciosa e densa floresta de pinhos e araucárias.

Meus curiosos olhos castanho-esverdeados, não desgrudam das janelas traseiras e embaçadas de nosso carro. Para além delas, a paisagem é nova e instigante. O carro é um pequeno e saltitante fusca cor de abacate, com seu característico interior com cheiro de gasolina e recheado de gente e bagagens.

Há anos, desde minhas primeiras recordações, nossa vida sempre foi cigana. Como juiz, nosso pai é transferido de cidade com frequência. Graças a Deus, não vamos mais sair de Florianópolis.

Durante nossas férias escolares, costumamos viajar. Desta vez, viemos conhecer um distante parente de meu pai, seu nome é Josué Moreno. Fomos convidados a ficar em sua casa, na montanha do Lago Negro, onde vive com sua esposa Marly. Estamos desde o amanhecer na estrada, e perdidos para variar. Não que esteja preocupado, Papai perde-se com frequência, mas sempre encontra o caminho certo. Chegamos atrasados e ele nervoso é claro, mas tudo acaba dando certo.

Devo confessar no entanto que, seu justificado mau humor, deve-se em parte ao nosso costume pouco inteligente de, ao menor perigo do carro ficar preso em terra fofa ou lama, torcer com gritos histéricos de: “vai atolar!”, “vai atolar!". E nos pequenos riachos, nossa pequena mais entusiasmada torcida grita sem parar: “vai afogar!, vai afogar!”

A temperatura desta manhã é agradável, a estrada é sinuosa e sombreada por árvores gigantescas que observam com indiferença o nosso passeio, e parece que subimos em direção ao céu. Aonde a vista alcança, os buquês anis de hortênsias e as delicadas flores de beijos, das cores vermelho, laranja e vinho, pontilham as encosta úmidas e íngremes e as vezes rochosa destas montanhas. Criando um magnífico e colorido contraste, com as finas folhas de pinho marrom-acinzentadas, que forram o terreno menos acidentado daquela floresta.

Margeando a estrada, delicados igarapés sussurram entre gramíneas, samambaias, e o seu leito rochoso é colorido por liquens e musgos.

As horas passam, o crepúsculo chega e junto o frio. São quase dezenove horas, ainda temos sol, mas continuamos perdidos e perambulando nas trilhas. Minhas longas pernas, espremidas neste pequeno espaço, começam a incomodar. Será que vamos passar a noite por aqui? Começo a importunar meu pai, o resultado é um grande alvoroço dentro do veículo.

O próximo que criar confusão desce do carro e vai seguir a pé! — fala meu enfurecido pai apontando para mim, e depois para minha irmã.

Algum tempo depois, já com o sol projetando sombras alongadas pelo caminho, encontramos a bela, original e confortável residência da família Moreno. Vou levar algum tempo, mas descrever este lar e seus moradores é uma obrigação por demais agradável e interessante...

Após uma curva do caminho, ladeado por intrincado pinheiral, emergimos subitamente numa clareira ensolarada, gramada e suavemente ondulada. Diante de nós a quase duzentos metros, ergue-se uma graciosa casa. À esquerda na clareira, existe um majestoso lago de águas escuras, com quase cem metros de diâmetro, lembrando um grande amendoim. Nas margens do lago, ajuntados de rochas escuras, arbustos, tuias e pinheiros de varias espécies. Uma pequena ilha rochosa parece flutuar em suas águas, e sustenta em floração, um velho ipê amarelo. E entre rochas e arbustos, repousam algumas aves coloridas.

Eleazar! — Exclama meu pai — Este é o Lago Negro. Não é bonito? Isto é que é morar bem, não é Ivete?

É lindo, querido! É como um sonho! Não dá para acreditar, que um lugar assim exista.

A casa é uma estrutura de troncos sobrepostos, antiga e sólida, unidos por algum tipo de argamassa. Com uma madeira grosseiramente talhada em chapas, construíram as portas, janelas, e o telhado. Encimando todo o conjunto, uma esguia chaminé de rochas enegrecidas pela fuligem, expulsa na brisa leve, uma delicada coluna de fumaça branca.

A residência parece possuir uma grande quantidade de cômodos, entre quartos, salas e outros espaços. Várias plantas trepadeiras, como o delicado jasmim de flores brancas e os avermelhados cachos de sete léguas, envolvem colunas e arcadas das varandas, criando um ambiente de sonho e fragrâncias.

Na frente da casa uma maciça porta dupla de madeira escura é ladeada por generosas janelas. Uma ampla varanda ocupa parte da frente da casa e a contorna pela esquerda. No primeiro andar, jardineiras floridas enfeitam duas grandes janelas, é ai que ficam os aposentos de meus tios, como viria a descobrir.

E fazendo parte desta aquarela delicada e rústica, um homem nos observa do mais alto dos largos degraus de rocha clara que leva à varanda. Seu nome é Mário Josué Moreno, tem uma idade indefinida, algo entre cinquenta e sessenta anos. Seu porte é atlético, possui um rosto estreito e longo. E tem uma pele bronzeada, curtida pelo sol e pelo tempo. Sua altura é acima da média, talvez um metro e oitenta e cinco. Mas, o que atrai minha atenção e me enfeitiçou para sempre, foram seus olhos penetrantes e profundamente negros. O seu nariz é enorme, como o de um índio norte americano. Sei, porque tenho um forte apache de brinquedo, e nele, o grande chefe Touro Sentado, tem um nariz igual.

Ele veste uma camisa xadrez avermelhada, uma velha calça jeans e botas de trabalho. Ele desce os degraus e nos recebe como velhos conhecidos que não se viam há muito tempo. Marly, a minha tia, como por encanto acomodou-se ao seu lado. Neste lugar mágico, parecia existir uma lei: um não poderia existir, sem a presença do outro.

Rubem! Ivete! Eu e Marly sentimos um grande prazer em finalmente conhecê-los. Quanto aos pequeninos Monike e Eleazar, temos uma gostosa surpresa para eles: uma deliciosa torta de morango silvestre, preparada por Marly, especialmente para eles!

Gulosa, minha irmã foi logo lambendo os lábios, e ficando num pé e noutro, pronta para alcançar primeiro a torta.

Eu e Marly ficamos preocupados, com a noite chegando, e vocês nada de...

Neste momento, uma voz suave e com um estranho sotaque fez-se ouvir.

Josh, vamos levar nossos parentes até a varanda, aqui já está ficando frio! Falou minha tia Marly. Uma senhora magra e alta, com cabelos longos e ruivos. Seus olhos são da cor do céu de meio dia. Veste-se de forma curiosa, uma saia longa cor de tijolo e blusa branca com bordados de cores vivas. E na fronte, uma faixa com os mesmos desenhos abstratos dos bordados. Sua face expressa satisfação e calma, aparenta ter no máximo quarenta anos.

O Livre-pensador (Josué)