Quantas menininhas no mundo inteiro não dizem isso às suas bonecas? Quantas? Quantas são capazes de compreender o que é amar? Além disso, quantas menininhas conseguem entender o que é amar para sempre?

Quantas bonecas conseguem compreender o que é amar para sempre?

Quantas bonecas conseguem compreender o que é amar?

A história se inicia como todas as grandes histórias: Se não fosse o começo de algo tão grande, provavelmente passaria despercebido em meio a outros milhares de eventos, um fato em um milhão. Um fato tão comum quanto único.

Comum e único como o aniversário de seis anos de uma linda garotinha.

Celie, como todas de sua idade, era adorável. Os cabelos ruivos cacheados davam-lhe um tom de leveza, e seus olhinhos castanhos eram incrivelmente límpidos e singelos. Linda.

Naquela tarde tão especial havia-lhe uma surpresa.

Papai vinha trazendo uma caixa, pouco maior que uma de sapatos grandes, muito bem-embrulhada, com papel rosa e um grande laço de fita dourado com o nome da filha. Entregou a ela e desejou-lhe feliz aniversário. Agradeceu Papai e tomou o pacote nos braços, abraçando-o.

E, como todas de sua idade, Celie, com o pacote nos braços, levou-o ao meio da sala e logo se formou uma roda em torno da aniversariante. Logo a sala estava cheia de pessoas que queriam ver o que havia por baixo daquele embrulho tão caprichoso.

E, como todas de sua idade, não teve complacência com o lindo papel de embrulho nem com a fita e nem com os lacinhos. Começou a abrir na parte de cima, onde, já sem papel, se lia: "Global Systems - Alegrando corações desde 2016". Entusiasmada com a cor rosa da caixa, continuou a rasgar o embrulho até vislumbrar, pela janela frontal de acrílico, um pequeno rostinho. Rostinho de boneca.

Continuou a abrir até a caixa ficar totalmente visível. Lia-se na parte da frente algo como "Lika - a sua amiguinha". Mamãe olhou feio para Papai, acho que o presente foi muito caro, mas os dois se desmancharam em lágrimas ao ver aqueles olhos brilhando tanto.

Papai se recompôs, e disse:

Filha, não pode sair brincando com ela agora. Tem que deixar ela carregar antes.

Mamãe a ajudou, tirando o carregador da caixa, conectando-o à boneca nas costas pelo painel de recarga e plugando-o à tomada.

Celie ficou olhando-a por alguns minutos, e foi cantar parabéns. Comeu bolo, recebeu beijos e abraços e, depois de meia hora, Papai a chamou:

Liga, filha. Pode ligar.

Assim que a boneca foi ligada, encolheu-se na posição fetal, causando certo espanto nos convidados. O espetáculo da vida artificial começava. Vagarosamente, ergueu a cabeça. Olhou para Celie.

Oi. Qual é o seu nome?

Celie — respondeu.

Oi, Celie. Quer ser minha amiguinha?

Quando a menininha disse "sim" a boneca a abraçou, e então irromperam aplausos de tios e tias, primos, do Papai e da Mamãe.

No dia seguinte Celie estava entusiasmada com o presente. Mal os raios de sol penetravam por seu quarto e ela estava acordada pensando no que ia fazer durante o dia com sua nova amiga. Daquele dia em diante, onde quer que Celie fosse lá estaria Lika em seu colo, ou caminhando ao seu lado de mãos dadas.

Passavam o dia inteiro juntas.

Passeando de carro, no parque, no escritório do Papai, na casa de outras amiguinhas, enfim, em todo lugar. No shopping, então, ia nos aconchegos do colo daquela menininha, abraçada junto ao peito com ternura.

Logo que acordava, Celie queria brincar com Lika. A boneca sugeria brincadeiras mil:

Troca minha roupa?

Me conta uma história?

Deixa eu dormir aqui com você?

Vamos brincar no parque?

Vamos desenhar?

Tudo era só alegria. Até na hora do almoço Lika sentava-se ao seu lado. Adoravam desenhar e, como trabalhava num escritório, Papai frequentemente trazia para casa formulários velhos e folhas de papel branco, onde Celie e Lika desenhavam sempre o mesmo céu azul com nuvens cor-de-rosa como os algodões-doces que o velho senhor no parque vendia. Era o lugar para onde sonhavam ir.

Adoravam ir ao parque. Divertiam-se lá nas quatro estações.

Na primavera, colhiam flores, deitavam-se na grama fresca e gostosa.

No verão, refrescavam-se no lago. Papai até havia feito um pequeno barco de madeira para Lika.

No outono faziam montes de folhas secas. E depois pulavam neles descompromissadamente.

No inverno ficavam juntinhas em casa e, vez ou outra, iam brincar na neve com outras crianças.

À noite ficavam olhando as estrelas na varanda e pensando o que fariam no dia seguinte.

Na hora de dormir havia todo um cuidado: Celie trocava a bonequinha, punha-lhe uma camisola branca feita pela Mamãe, e dormiam lado a lado. Vez ou outra ligada ao carregador.

E tudo começava de novo no dia seguinte. E no dia seguinte. E no dia seguinte. Por muitos dias seguintes assim foi.

E eis que o implacável tempo ataca. Sem piedade.

Causa vazamentos, enfraquece juntas, desgasta o sistema de voz, leva consigo as cores de seu rosto, o índigo de seu vestido e o loiro reluzente dos cachinhos.

E leva a novidade. Leva também o interesse.

Não há nada que seja tão cruel quanto o tempo.

O tempo a desgastou. O tempo fez Celie crescer e ficar com certa vergonha de andar com uma boneca para todo lugar.

Até que, num certo dia, Celie, ao ver o vestido desbotado, os cabelos esbranquiçados e a face levemente descorada da boneca, decide não levá-la mais consigo aos passeios ao parque, condenando-a à prateleira.

A mais próxima do teto.

Era o início do fim.

E o tempo fez a garotinha crescer e esquecer a amiguinha.

"— Pra sempre?

Pra sempre."

Esse "pra sempre" durou quatro anos.

Como todas as garotinhas lindas, Celie cresceu. Cresceu e se esqueceu de Lika.

Certo dia a viu, empoeirada na prateleira em meio a tantas caixas e livros velhos e pensou em uma brincadeira nova. Religou-a, a boneca abriu um sorriso, algo que não fazia havia quatro anos, tomou-a em mãos, colocou-a numa caixa qualquer e acomodou-a no fundo de seu armário.

Lika chamou por Celie e debateu-se. Lembrou-se dos momentos que tiveram juntas, as tardes no parque, as brincadeiras no outono, a época em que era amada.

E assim foi por três dias, até que a bateria de íon-lítio se esgotasse.

O terceiro dia foi o mais longo. De repente passaram-se, num só dia, cinco anos.

Que é isso?

Deixa aí! Não mexe!

Vou chamar a mamãe...

Tá, tá...pode ligar.

Os pequenos olhos se abrem novamente, as juntas voltam a trabalhar novamente e, após o terceiro dia, Lika se põe de pé. Novamente.

A garotinha se aproxima:

Quem é você?

Cadê a Celie? Quem é você?

Eu sou a Irna, a Celie é a minha irmãzona.

Mamãe entra no quarto:

Filha, você achou a Lika? Pensei que a sua irmã tivesse se desfeito dela...

Cadê a Celie?

A garota entra no quarto. Ao ver a boneca, diz:

Lika...ainda funciona?

A boneca olha e reconhece a voz:

Celie, é você? Como você cresceu...

Celie a pega com certa frieza e Lika simula um sorriso: esse é o momento que tanto esperava. Um abraço, depois de tanto tempo. A menina a desliga. Joga-a na caixa de novo:

Não vai querer brincar com isso. Ela é muito chata.

Quero, sim!

Tá bom, que seja… — ela pega a boneca, a religa e põe no chão. — Mas brinca com ela longe de mim.

E entrega-a à irmã. Todo o sistema se reinicia, causando uma mesma cena do passado, e de fato seria como naquela festa de aniversário de seis anos que ela jamais esquecera, se não fosse pelo trágico fator de aquela menininha que se ajoelhava à sua frente não ser a pessoa que Lika realmente aprendeu a amar.

Amor.

Sentimento estranho.

Cumplicidade, afeto, carinho, enfim, tudo o que um ser humano produz.

Tudo que uma máquina foi capaz de produzir.

Tudo que Lika sentia.

Mas que Celie não sentia mais.

Amor.

Impulsos elétricos provindos de um circuito positrônico autoadaptativo e autorreprogramável projetado em cada detalhe para assimilar e simular assimétrica e aleatoriamente a complexidade afetiva presente no subconsciente humano.

Enfim, o amor.

Como todas as de sua idade, Celie vai ao shopping. A garotinha cresceu: quando seus pais se ofereceram para acompanhá-la, disse que já era bem grandinha, e que "uma garota de dezessete anos não precisava de pai e mãe a tiracolo". Foi com as amigas e a irmã.

Se dizia não gostar de ir com os pais, quanto mais com Lika, "aquela boneca velha, feia e chata, aquele pedaço de lixo que eu devia ter destruído quando tive chance".

Chegou mal-humorada, afinal fora com a irmã, que levou Lika, e a "maldita boneca", como ela passou a chamar quem prometeu amar para sempre, resolveu pedir a Celie que a levasse no colo. Queria sentir o toque de ternura dos braços dela novamente, como quando tinha seis anos, e ela aceitou devido a ferrenha insistência. Porém, no elevador panorâmico a suposta cena de amor tornou-se uma piada para suas amigas, que a viram do piso inferior com uma boneca nas mãos, algo supostamente vergonhoso para alguém de sua idade; coisa de criança, diziam. Ainda mais com uma com a aparência de Lika. Mais uma situação que apenas aumentou seu ódio pela desgastada boneca. Então decidiu que era o fim.

Já não aguentava mais aquela pequena e envelhecida boneca, e pensou em mais uma brincadeira nova.

Pôs a boneca na caixa, a mesma caixa do armário, e saiu para "dar uma volta", como disse à Mamãe. Lika foi junto, para não mais voltar.

Montou na motocicleta do namorado, que já a esperava, e rumaram à Cidade Velha, como ficou conhecida aquela área da cidade onde haviam tantas carcaças de veículos obsoletos, um lugar tão desolado quanto uma cidade-fantasma. Lá, em um dos muitos ferros-velhos, deixou-a embaixo de uma árvore retorcida e murcha. Por crueldade não havia carregado a bateria. Deixá-la-ia lá para se degenerar.

Deixá-la-ia lá para morrer.

Tchau, tchau, pedaço de lixo.

Foi a última frase que ouviu daquela garota, no que se transformou a doce Celie que, como toda garotinha de seis anos, havia crescido e se esquecido.

A última frase que ouviu antes que, durante uma tentativa frustrada de se segurar e retornar para o colo dela, a moto atropelasse uma de suas perninhas, fazendo-a sentir dor.

Ela lhe infligiu dor.

Prometeu amá-la e lhe infligiu dor.

No ferro-velho tudo era muito solitário, e por onde se olhasse havia destruição e tristeza, com pilhas e mais pilhas de metal vertendo ferrugem entre peles sintéticas e circuitos integrados se decompondo, criando quase uma paisagem tecnoapocalíptica, um ponto final a qualquer ser dotado de cérebro positrônico. Um cemitério de máquinas.

De tempos em tempos esses detritos são removidos por Coletores, cujo objetivo é levar esse material a alguma zona de descarte ou reciclagem. Junto com essa carga, centenas de robôs e androides descartados ou em fim de uso. Centenas como Lika.

Enquanto o Coletor circulava pela cidade, uma garotinha a viu:

Mamãe, pega pra mim?

Não, filha, tá quebrada. É lixo.

Aquelas palavras feriram seu - qualquer equivalente de - coração da boneca. Ninguém mais a queria. Nem mesmo Celie, que a deixou lá.

Então, ela viu Papai, com o carro. Ela acenou e ele escureceu os vidros, mas foi tempo suficiente para que ela visse no banco de trás um pacote: uma caixa, pouco cor-de-rosa maior que uma de sapatos grande, onde se lia algo como "Nina - a sua amiguinha".

Então sentiu outra dor. Rejeição. Além disso: Substituição. Descobriu enfim que a garotinha tinha crescido de fato, e que ela não era nem nunca foi uma amiguinha. Era um brinquedo. Um brinquedo que se tornara inútil e fora descartado.

Um brinquedo que amava, que sorria e chorava, que andava e falava, um brinquedo que brincava.

Um brinquedo que sentia dor e sangrava fluido hidráulico.

Algum tempo depois o Coletor trepidou e fez Lika ir ao chão. Quase descarregada, viu os portões do parque da cidade. Arrastou-se até passar por entre os portões fechados, esquivando-se por baixo de uma grande placa: "Condenado".

Com a carga baixa, fez um último esforço para chegar àquela árvore tão familiar como irreconhecível. Encostou-se nela, deitou-se e olhou ao céu. Viu as estrelas.

E lembrou-se de que era lá, debaixo daquela mesma árvore, daquele mesmo carvalho hoje retorcido e velho de poluição, que costumavam ler histórias. Onde costumavam se divertir.

Naquele lindo lugar de seus sonhos, Lika sangrou óleo, ferrugem e ácido da bateria.

Os olhos vazavam fluido condutor.

Os olhos choravam lágrimas.

Consumiu-se durante uma semana interminável enquanto, num processo irreversível, o sistema começava a apagar.

Tal qual um último suspiro de - qualquer equivalente eletrônico cabível de - vida, executou a gravação de uma das tardes que passara com Celie embaixo daquele carvalho onde, agora, se decompunha:

"— Eu te amo. Pra sempre vou te amar. Você é a minha amigona.

Não vamos nos separar?

Nunca. Eu te amo muito.

Pra sempre?

Pra sempre."

Paolo Giovanoli

"[...]E pela primeira vez, David adormeceu, e foi para o lugar onde nascem os sonhos."(Brian Aldiss)