Contos Galácticos

Contos, artigos e traduções interessantes do Informátivo Galácito, o Fanzine exclusivo do Projeto Traduções para seus integrantes, liberados para apreciação do público em geral!

Zero e Um

Trazemos novamente, em especial de Fim de Ano, um conto de César Maciel, editor-assistente da nova edição brasileira e fã de Perry Rhodan desde 1985! César é um grande conhecedor da série, uma verdadeira enciclopédia viva de PR. Seu conto, finalizado em 1996, agora relançado pelo Projeto Traduções!

Zero e Um

Era um mundo belo e pacato. Grandes mares cobriam sua superfície, alternando-se com continentes exuberantes em belezas naturais. Seus habitantes eram o povo mais antigo da Via Láctea, e cuidavam de seu planeta com sabedoria. Todos tinham plena consciência de seu passado sangrento e brutal, e preservavam ao máximo a paz e serenidade que haviam conquistado.

Não era apenas paz o que haviam conseguido. O povo daquele mundo já havia atingido o mais alto grau de evolução possível, tanto física como moralmente. Seus corpos, extremamente frágeis, eram protegidos pelas parafaculdades geradas por seus poderosos cérebros, e sentimentos negativos como vaidade, inveja e ira não existiam já há um longo tempo. Uma cultura com a sabedoria de bilhões de anos não possuía mais tais sentimentos, o que por si só eliminara os conflitos entre os indivíduos, e, consequentemente, tornara inútil guerras e lutas. Em todos os sentidos, aquela cultura atingira a perfeição.

Mas havia algo ainda que poderia ser feito pela evolução daquela sociedade. Uma solução ousada, que somente ela poderia tentar. Era algo inconcebível para qualquer raça num estágio evolucionário inferior: o abandono de seus corpos físicos, com a união de bilhões de consciências individuais numa única, imortal e quase onisciente.

A Grande Unificação ocorreu em algum ponto do tempo, há milhões de anos. Através dela, toda uma raça desapareceu, dando origem a uma entidade sem corpo, sem matéria, sem nome. Esta entidade consumiu um longo tempo explorando o universo: em sua quase onipotência, permitida pela poderosa energia psiônica condensada de bilhões de seres, ela explorou incontáveis galáxias, conhecendo raças, sóis e planetas com inacreditáveis formas, características e histórias. Durante muito tempo, ela não encontrou nada que se assemelhasse a si própria. Nenhuma cultura no universo era tão antiga como ela.

Finalmente ela construiu um planeta artificial numa órbita errante pela Via Láctea, que passou a ser um ponto de referência material para si própria, além dos seres corpóreos que viajavam pela galáxia em seus frágeis envoltórios de metal. A entidade divertia-se com as ações das inúmeras raças que exploravam o universo em sua maneira limitada, pensando serem os mais poderosos seres do universo. De tempos em tempos, ela assumia uma forma física e vivia como um membro de tais sociedades, para conhecê-las melhor.

Porém, o poder absoluto e a perfeição tornaram-se muito cansativos, até mesmo para ela. Tudo que existia no universo era inferior às suas capacidades, e parecia não haver mais nenhuma fronteira a ser desbravada.

Mas, após um longo tempo de pesquisas, ela descobriu que seu universo era apenas um entre muitos, e que possivelmente haviam infinitos universos, cada um com suas leis físicas peculiares. Ela também descobriu outros planos de existência, nos quais todas as possíveis linhas de tempo ocorreram, tornando todos os acontecimentos possíveis reais. Era um novo e infinito campo de descobertas, digno de sua existência. Todo o tempo de vida restante para o nosso universo não seria suficiente para conhecer tudo que ela desejava. Sua existência adquiriu um novo sentido.

Durante milhões de anos, ela acumulou conhecimento sobre milhões de universos paralelos, com incontáveis leis físicas e possibilidades de acontecimentos. E, em vários universos, ela encontrou-se com superinteligências como ela, com os mesmos propósitos. Entretanto, algumas eram intrinsecamente más, tendo o objetivo não somente de conhecer, mas de conquistar e dominar. Felizmente, as barreiras que separavam os infinitos universos eram grandes demais até mesmo para as superinteligências, que só conseguiam superá-las às custas de imenso dispêndio de esforços.

Porém, um dia, aconteceu algo já previsto por ela, e que poderia ter consequências imprevisíveis. Vários superseres negativos estavam unindo-se para poder transpor as barreiras dimensionais, e conquistar outros universos. Um desses seres era exatamente igual a ela só que com uma história inversa, onde a Grande Unificação serviu apenas como um meio para dominar sua galáxia de origem, e, depois, todo seu universo. As perspectivas pareciam terríveis, pois em algum momento no futuro ela teria que confrontar-se com seus negativos, numa batalha de proporções inimagináveis.

Nesse momento, entraram em atuação as fontes de matéria, um poder primordial em seu universo criado há incontáveis eras para manter a ordem. Ela encontrou-se com um de seus representantes, que deu-lhe a missão de encontrar dois seres que os ajudariam em sua luta contra os destruidores de matéria. Durante muito tempo, ela procurou os dois seres, através de enigmas galácticos que somente os mais capazes poderiam decifrar. O primeiro destes seres foi o arcônida Atlan, que recebeu um ativador celular. Dez mil anos depois, o terrano Perry Rhodan, que começava a trilhar o caminho das estrelas juntamente com a Humanidade, recebeu o segundo ativador. Com isso, sua busca estava completa, restando apenas preparar-se para a inevitável batalha.

Mil e quinhentos anos após o surgimento de Rhodan, a superinteligência negativa mais parecida com ela própria, vinda de um universo paralelo idêntico ao dela, consegue romper as barreiras dimensionais de uma forma limitada e começa a travar um jogo de xadrez cósmico com sua contrapartida positiva. Rhodan, Atlan e mais incontáveis raças da Via Láctea e de outras galáxias são figuras decisivas nesta luta. Após a união de várias forças positivas, o superser negativo é rechaçado, porém a ameaça permanece latente.

A partir deste momento, a polarização das forças positivas e negativas atinge um ponto culminante, com ambas as superinteligências consolidando seus respectivos esquemas de poder. A entidade sabe que, no futuro distante, uma das forças dominará os universos, e teme que o resultado da luta tenha um desfecho trágico. Ela sabe que, enquanto os seres positivos seguem as leis da moral, acreditando na ordem e na justiça, os seres negativos apenas fazem o que querem, não preocupando-se em matar trilhões de seres viventes, se for conveniente para eles.

A entidade, também conhecida como “AQUILO” pelos terranos, tenta fortalecer seu poder para conseguir subjugar seus inimigos, e tornar a ordem reinante em seu universo.

Mas ela sabe que a luta dos polos, que provocou o nascimento de seu universo, também vai provocar sua destruição. Se as forças negativas estiverem prestes a vencer a luta titânica, ela não hesitará em adotar a Solução Final, e sabe que os negativos farão o mesmo em caso contrário. Os terranos e as outras raças são apenas uma maneira de adiar o inevitável “Big Crunch”, assim como raças de outros universos contribuíram, no passado remoto, para o “Big Bang”.

FIM

César Augusto F. Maciel

27 de Maio de 1996

Revisão em Dezembro de 2017

Imprimir Email

O Sobrevivente

Trazemos mais um conto, mais que especial, de César Maciel, editor-assistente da nova edição brasileira e fã de Perry Rhodan desde 1985! César é um grande conhecedor da série, uma verdadeira enciclopédia viva de PR. Seu primeiro conto aqui no IG foi “A Última Profecia”. Acompanhem agora a primeira parte do conto “O Sobrevivente”, mais um conto finalizado em 1997 e que agora será relançado pelo Projeto Traduções!

 

O Sobrevivente

 

Ele acordou suavemente, passando do estado de sonolência para o de vigília sem nenhuma perturbação. Logo após seu despertar ele lembrou-se do sonho que estava tendo, relacionado com lembranças de sua infância na Terra. A casa de seus pais em Terrânia, seu cão cocker spaniel branco brincando com ele no jardim, seus colegas de escola… “Por quê estas antigas lembranças afloraram agora?”, pensou. No instante seguinte percebeu onde estava e lembrou-se dos momentos anteriores à explosão que o catapultara para aquele local, no vazio infinito do espaço.

Selma, qual é a data? — perguntou ele para seu SERUN.

Quinze de agosto de 1289 NCG, tenente Hendrikson. Quinze horas e trinta e dois minutos, se quiser um pouco mais de exatidão — respondeu-lhe a voz suave e aveludada saída do alto-falante interno de seu capacete.

Então fiquei desacordado por quase dez horas”, pensou ele, e fez mais uma pergunta para o SERUN:

Qual é minha situação médica e o estado do SERUN, Selma?

Todos os seus sinais vitais estão estáveis, e você não sofreu nenhum trauma interno ou externo grave devido à explosão. Contudo, a violência da explosão deixou-o inconsciente por nove horas e quarenta e nove minutos. Assim como você, o SERUN também continua em perfeita ordem, com exceção de danos mínimos no projetor paratron.

Hendrikson sentiu-se aliviado por ter sobrevivido à explosão de sua nave com tão poucos danos no SERUN e em si próprio, e começou a lembrar-se dos últimos momentos a bordo da SHERAZADE. Desde o início de agosto, a nave de cem metros de diâmetro estava observando a frota tolkander estacionada no aglomerado estelar 47 Tucani, para onde ela havia se retirado logo após a catástrofe nos planetas previamente ocupados por eles. A missão da SHERAZADE consistia em passar informações sobre a atividade tolkander em 47 Tucani diretamente para a PAPERMOON, de onde o comissário Cistolo Khan comandava a defesa da frota terrana contra os invasores. Durante duas semanas a frota tolkander manteve-se inativa. Contudo, em quinze de agosto, quase vinte mil das duzentas mil naves saíram de formação e entraram no espaço linear rapidamente. Quando a SHERAZADE estava prestes a iniciar sua perseguição a esta frota de vinte mil naves, ela foi subitamente atacada por uma nave-ouriço na órbita do planeta na qual ela mantivera-se escondida nas últimas semanas. A tripulação da SHERAZADE foi pega de surpresa, e, antes que pudesse revidar, a nave recebeu um impacto direto que sobrecarregou seu campo paratron e provocou a destruição da nave. Provavelmente ele foi atirado para fora da nave e sobreviveu somente porque estava usando seu SERUN e mantinha seus campos defensivos ativados.

Selma, a que distância estou da última posição da SHERAZADE?

Você encontra-se a 4.375 quilômetros de distância da última posição da nave.

Mesmo antes de receber a resposta de Selma, Hendrikson já sabia que não havia afastado-se muito do ponto onde a SHERAZADE explodira, pois podia ver perfeitamente o planeta desconhecido abaixo dele em torno do qual a nave havia orbitado nas últimas semanas. Era um mundo desolado semelhante ao planeta Mercúrio, com uma paisagem monótona formada por milhares de crateras dos mais variados tamanhos. No momento ele estava afastando-se lentamente dele a uma velocidade de 121,5 metros por segundo, uma velocidade ligeiramente menor àquela com a qual ele havia sido catapultado da SHERAZADE, e esta velocidade diminuía lentamente devido à atração gravitacional do planeta.

Selma, verifique a situação da frota tolkander.

180.000 unidades continuam estacionadas em seu ponto inicial, a 5,7 anos-luz daqui. Não há sinais de outras naves neste sistema específico.

Pelo menos não preciso me preocupar com inimigos no momento”, pensou Hendrikson antes de pedir a Selma que verificasse a localização de outros possíveis sobreviventes da SHERAZADE no sistema. Após alguns segundos, para a decepção de Hendrikson, Selma confirmou a inexistência de outros seres vivos num raio de dez bilhões de quilômetros. “Estou sozinho”, pensou ele, desolado.

Hendrikson percebeu em poucos segundos a situação desesperadora na qual se encontrava. Ele estava sozinho num sistema inabitado a 19.000 anos-luz da Terra, e não poderia enviar nenhuma mensagem de socorro para outras bases terranas devido à presença da gigantesca frota tolkander a apenas 5,7 anos-luz de onde estava. Se não recebesse nenhuma ajuda nas próximas semanas, seus suprimentos de água e comida certamente se esgotariam. “Tenho que manter-me calmo”, pensou ele.

Selma, dê-me as informações sobre este sistema que foram coletadas pela nave nas últimas semanas. Somente os fatos mais importantes, por favor.

O sistema Sheraz-49 — começou Selma — consiste de três planetas orbitando uma estrela vermelha do tipo M3, com uma temperatura superficial de 3.400 graus Celsius. O primeiro planeta tem um diâmetro de 5.270 quilômetros, temperatura média de 410 graus Celsius e apresenta a superfície entrecortada por milhares de crateras de todos os tamanhos. Já o segundo planeta é um gigante gasoso com um diâmetro de 67.590 quilômetros e uma densa camada de nuvens de hidrogênio e hélio, sem a existência de uma superfície sólida. O terceiro e último planeta possui 8.420 quilômetros de diâmetro, uma temperatura superficial de 35 graus Celsius e uma tênue atmosfera de gás carbônico. Sua superfície compõe-se de rochas e existe um pequeno mar nas proximidades de seu polo sul.

Excelente, Selma. Se necessário poderemos aguardar neste terceiro planeta pela chegada de ajuda. Há algum tipo de vegetação ou vida animal nele?

Os dados são inconclusivos, Tenente. É possível que exista vegetação ao redor do mar, mas não foram feitas maiores pesquisas nesse sentido.

Muito bem Selma, vamos para lá. É melhor ter chão firme sob os pés do que flutuar no meio do nada bem ao lado de um planeta. Tenho a impressão de que cairei nele a qualquer momento.

Isto é impossível, Tenente. Neste momento você está afastando-se dele à velocidade de 121,5 metros por segundo no sentido oposto ao do sol. Se continuar nesta trajetória, deverá cruzar a órbita do segundo planeta em exatamente 26 anos e 46 dias. Obviamente isto nunca ocorrerá, pois muito antes disso você deverá entrar numa órbita altamente elíptica ao redor do planeta abaixo.

Hendrikson não disse nada, mas pensou no quanto computadores sabiam ser pedantes. Apesar de Selma ser a última palavra em computadores sintrônicos acoplados a SERUNs, ele achava que seus programadores poderiam ter incluído em sua “alma” feminina um pouco mais de leveza e originalidade. “Bem, afinal, ela não passa de um monte de campos hiperenergéticos manipulando dados a velocidades ultraluz. Esperar humanidade disso seria demais!”, pensou ele.

Muito bem, Selma, comece a monitorar as transmissões de hiper-rádio nas proximidades e avise-me de qualquer novidade fora do comum. A propósito, durante o tempo em que estive desacordado você captou algo incomum?

No mesmo instante Selma disse:

Captei somente algumas poucas mensagens de naves arcônidas que faziam o mesmo que a SHERAZADE a partir de locais um pouco mais distantes, cerca de 500 anos-luz de nossa posição atual. A frota tolkander manteve-se silenciosa como sempre.

Hendrikson resmungou contrariado. Desde que a frota tolkander havia reunido-se em 47 Tucani, o tráfego de naves mercantes havia diminuído substancialmente naquele setor espacial, o que diminuía igualmente as suas chances de ser resgatado por alguma nave. Sua única possibilidade de socorro seria esperar pelo surgimento de alguma nave terrana que estivesse investigando o paradeiro da SHERAZADE. Enquanto isso, sua única opção seria dirigir-se ao terceiro planeta, onde ele poderia tentar renovar suas reservas de oxigênio, água e comida.

Enquanto dava a Selma a ordem de ligar os projetores antigravitacionais de seu SERUN e iniciar o longo voo em direção ao terceiro planeta, ele procurou relaxar observando as estrelas distantes através do visor de seu capacete.

 

***

 

Após três horas de voo em velocidade continuamente crescente, Hendrikson não suportou mais a espera e pediu a Selma que recapitulasse os dados conhecidos sobre os tolkanders. Ele teve que pedir-lhe para ser bastante sucinta, pois devido ao enorme tamanho de seu banco de dados sobre a história galáctica ela poderia falar durante semanas sobre um mesmo assunto, sem se repetir.

Hendrikson ouviu com atenção a explanação de Selma, que começava em dezembro de 1288 e terminava no momento presente. Durante quase duas horas, Selma relembrou-o das catástrofes provocadas pelos tolkanders em inúmeros mundos da Galáxia, bem como de sua enigmática relação com os Filósofos e a misteriosa entidade Goedda. Tudo começou no planeta Lafayette, onde um comando terrano conseguiu pesquisar algumas das milhares de sondas ovais que estavam sendo lançadas em inúmeros mundos da Via Láctea pelas naves-ouriço. Estas naves estavam procurando planetas que pudessem ser transformados em incubadoras para o Vivoc, a matéria viva indispensável para a procriação dos tolkanders, um nome comum a várias raças, como os alazars, neezers, gazkars e eloundars. Nos meses seguintes, um número cada vez maior de naves-ouriço penetraria na Galáxia, transformando trezentos planetas em gigantescas incubadoras. Em cada um dos planetas repetia-se o mesmo quadro: os neezers ocupavam o planeta e criavam sobre ele a Varredura Trançada, uma malha feromônica de agentes químicos que, ao mesmo tempo que tinha como objetivo desorientar os habitantes do planeta, servia como elemento orientador dos gazkars, os guerreiros da Aliança Tolkander. Após a conquista do planeta pelos gazkars, os alazars e eloundars levavam para o mesmo o Vivoc, do qual originava-se sua prole: os Filósofos. Estes seres originaram-se em 52 planetas, nos quais foi exterminada toda a vida previamente existente nele. Após estas mortes em massa, a frota tolkander, composta por 200.000 unidades pesadas, retirou-se para o setor 47 Tucani, um aglomerado estelar esférico com 253 anos-luz de diâmetro.

Porém, o horror tolkander estava apenas começando: estes 52 Filósofos foram para outros 52 planetas e dominaram completamente as suas populações, que passaram a ter como único objetivo de vida unirem-se à entidade Goedda, mesmo que para isso fosse necessária a morte. Pouco tempo depois surgem na órbita destes planetas as “bolhas dos sonhos” ou bolhas-hiperespaço, nas quais os Filósofos entram. Os terranos descobrem que estas bolhas poderão transformar os Filósofos nas chamadas Pequenas Mães, e que, após esta transformação, poderá ser feita a metamorfose final: cada Pequena Mãe se tornará uma Grande Mãe, um ser semelhante a Goedda. Contudo, esta transformação gerará um ser tão poderoso que uma única Grande Mãe será suficiente para destruir toda a Via Láctea.

Na tentativa de impedir a metamorfose dos Filósofos, os galácticos já conseguiram destruir nove bolhas-hiperespaço, mas cada uma das 43 bolhas restantes representa um perigo inimaginável para a Galáxia. Esta luta impiedosa pela sobrevivência da Galáxia já custou a vida de dois importantes galácticos: as irmãs Mila e Nadja Vandemar, que morreram durante a destruição da bolha-hiperespaço que continha o próprio Goedda. Aparentemente, Goedda foi destruído junto a bolha, mas sabe-se que seu poder poderá ressurgir com a criação das Grandes Mães restantes. Além disso, alguns dos mais importantes planetas da Galáxia estão sob o domínio dos Filósofos e das bolhas, como a Terra, Olimpo, Gatas, Plofos e Ferrol, entre outros. A libertação destes importantes mundos significa a eliminação deste grande perigo para toda a Galáxia.

Após o fim da narração de Selma, Hendrikson ficou pensando nestes terríveis acontecimentos. “A história da Galáxia é uma história de luta, morte e destruição”, filosofou ele. “Podemos ficar séculos em paz, mas sempre chega o dia no qual toda a loucura começa novamente.” Pouco depois ele adormeceu, e, ao contrário de seu sonho anterior, desta vez sonhou com gigantescas frotas de naves-ouriço e entidades malignas dentro de bolhas energéticas.

 

***

 

Após vinte e duas horas de voo, o SERUN contendo o tenente terrano e seu computador sintrônico aproximou-se do terceiro planeta à velocidade de 6.000 quilômetros por segundo. Automaticamente, Selma desacelerou o SERUN para uma velocidade aceitável e calculou o ângulo de entrada na atmosfera do planeta. Hendrikson já estava acordado há várias horas, e observou com certa admiração o planeta à sua frente. Ele lembrava-lhe Marte, apesar da existência do pequeno mar situado em seu polo inferior.

O SERUN começou a penetrar na atmosfera com o campo hiperenergético ligado, e Hendrikson transformou-se numa estrela cadente para um hipotético observador na superfície. Massas de ar superaquecidas uivavam ao seu redor, enquanto Selma diminuía a velocidade e ajustava o ângulo de entrada com a precisão típica dos computadores sintrônicos. A cada minuto que se passava, ele podia ver mais detalhes da superfície do planeta, e começou a distinguir as grandes cadeias montanhosas, os cânions com milhares de quilômetros de extensão e os gigantescos desertos rochosos daquele mundo sem nome. Após mais alguns minutos, ele já estava aproximando-se da base de uma gigantesca cordilheira, e pôde verificar que a superfície do planeta consistia de uma monótona paisagem de rochas e poeira avermelhada.

Quando finalmente colocou os pés no chão do planeta, ele agradeceu silenciosamente aos cientistas terranos que haviam inventado o SERUN. Esta SEmi-reconstituent Recycling UNit era, no final das contas, somente um traje espacial, mas era seguramente o traje espacial mais avançado que já fora criado. Muitos galácticos consideravam-no como uma mininave subluz, ou ainda uma unidade móvel de combate. “Qualquer denominação que inventarem será inútil diante de seus múltiplos recursos”, pensou Hendrikson. Somente o computador sintrônico e a unidade cybermed já eram maravilhas por si só, sendo o primeiro um sensor ultraluz e um banco de dados com terabytes de informação, e, o segundo, uma unidade médica extremamente independente e eficaz.

Hendrikson deixou os devaneios de lado e procurou concentrar-se na paisagem ao seu redor. À sua frente, a poucos quilômetros de distância, era visível uma cordilheira de montanhas rochosas com dezenas de quilômetros de altura e algumas centenas de quilômetros de comprimento. Atrás dele e ao seu redor a paisagem era estranhamente plana, assemelhando-se a um deserto rochoso vermelho.

Selma, qual é a composição da atmosfera?

Noventa e dois por cento de gás carbônico, sete por cento de nitrogênio e um por cento de gases variados.

Irrespirável, portanto — concluiu Hendrikson. Apesar do ar no interior do SERUN ser constantemente reciclado, ele gostaria de poder respirar um pouco de “ar puro”, apesar de saber muito bem de que esta percepção de “puro” era puramente psicológica.

Algum sinal de vegetação ou formas de vida, Selma?

Após alguns segundos, Selma respondeu:

A 4.600 quilômetros daqui localiza-se o único mar deste planeta, e ao seu redor existem formas primitivas de plantas. É possível que existam também insetos ou animais maiores, mas somente com uma maior aproximação poderei dar-lhe a resposta exata.

Pois então vamos para lá.

Antes que Selma ligasse os projetores antigravitacionais do SERUN, ele completou:

Mantenha uma velocidade moderada, pois assim poderei ver com tranquilidade a topografia deste mundo.

Como quiser — respondeu-lhe Selma, enquanto o SERUN elevava-se acima da superfície do planeta e começava a aumentar sua velocidade em direção ao único mar daquele mundo.

 

***

 

Durante pouco menos de duas horas Hendrikson pairou acima da superfície do planeta a uma altitude média de dez quilômetros, desenvolvendo a velocidade de quase 2.600 quilômetros por hora. Seu campo hiperenergético evitava que o SERUN se desmanchasse com o atrito do ar, e somente por duas vezes ele teve que aumentar sua altitude para passar por cima de algumas montanhas mais altas. Durante todo o caminho a paisagem mantinha-se rochosa e avermelhada. Era dia naquele lado do planeta, e os débeis raios avermelhados do sol projetavam sombras mórbidas em sua superfície.

Finalmente, Hendrikson avistou o mar, que parecia-se com uma grande massa azul com reflexos cor de ferrugem cercada de vermelho por todos os lados. Em vários pontos ao longo de sua borda, podiam ser vistas manchas avermelhadas mais escuras, e Hendrikson resolveu confirmar suas suspeitas fazendo uma pergunta a Selma.

Selma, o que são aquelas manchas escuras ao redor do mar?

São plantas primitivas, Tenente.

Hendrikson sorriu ao lembrar-se que a palavra planta sempre estivera associada com a cor verde, o que provocava-lhe esta sensação de mal-estar ao avistar plantas completamente vermelhas. Contudo, a vida, em sua infinita diversidade, conseguia adaptar-se aos mais diversos ambientes com perfeição.

Após mais alguns minutos de voo, o SERUN diminuiu de velocidade e altitude, até finalmente pousar a menos de cem metros da borda do mar. Hendrikson gostou de andar um pouco, pois desde a destruição da SHERAZADE ele não tinha a oportunidade de usar seus próprios músculos no interior do SERUN. Com passos largos ele chegou à beira do mar, e observou a água azul escura que o preenchia.

Análise da água, Selma?

Há muitas partículas de óxido de ferro em suspensão, mas os sistemas regeneradores do SERUN serão capazes de purificá-la.

Já resolvi o problema da água”, pensou Hendrikson. Apesar de ter reservas de água para uma semana, ele não acreditava que alguma nave terrana pudesse chegar tão rapidamente àquele sistema em busca da SHERAZADE. “Isso também explica seus reflexos avermelhados”, concluiu Hendrikson mentalmente a respeito das partículas ferrosas na água.

E quanto às plantas, Selma? Qual é sua composição?

Estendendo tentáculos sensores invisíveis, Selma analisou as plantas e disse a Hendrikson:

As plantas possuem trinta e duas toxinas mortais à espécie humana. Portanto, são inúteis para consumo.

Desapontado, Hendrikson perguntou:

Você consegue rastrear a presença de alguma espécie animal?

Após alguns segundos, Selma negou a existência de qualquer tipo de vida no planeta, com exceção de microrganismos simples no ar, na superfície das plantas e na água.

Com o racionamento adequado, minhas rações durarão cerca de duas semanas”, pensou ele. “Tenho duas semanas para ser resgatado por uma nave terrana, senão...”, concluiu ele.

Ele andou durante um bom tempo ao redor da água e procurou afastar os pensamentos sombrios de sua mente. Após um longo tempo, ele deitou-se à sombra de uma grande pedra próxima e procurou relaxar. Tentou jogar xadrez com Selma, mas subitamente percebeu que estava tão tenso diante de sua situação que não conseguia se concentrar no jogo que ocorria no tabuleiro holográfico projetado no ar. Finalmente recostou-se e dormiu.

Ele não poderia imaginar que, enquanto dormia, uma pequena parte da frota tolkander dirigia-se para o terceiro planeta daquele sistema do sol avermelhado numa missão de destruição.

 

***

 

Após acordar, Hendrikson resolveu voar sobre o planeta a uma alta altitude e pôde constatar que, com exceção da área com o mar e as plantas, sua paisagem era terrivelmente monótona. Para afastar um pouco a melancolia, ele decidiu entrar em órbita do planeta e percorrer alguns milhares de quilômetros ao seu redor para observar novamente as estrelas e tentar clarear sua mente.

Pouco antes de completar sua primeira órbita, Selma deu-lhe notícias assustadoras.

Tenente, estou detectando cerca de cem naves tolkanders. Elas acabaram de sair do espaço linear e estão dirigindo-se para este planeta em alta velocidade.

Em quanto tempo elas chegarão aqui? — perguntou Hendrikson, alarmado.

As naves chegarão à nossa posição em cerca de oito minutos.

Oito minutos! Então eles já podem nos detectar!

Sugiro que todos os sistemas do SERUN sejam colocados em força mínima e que mantenhamos a mesma órbita atual. É possível que eles não consigam nos detectar.

Concordo plenamente, Selma — disse Hendrikson, agitado — Reduza todos os componentes a um mínimo indispensável, inclusive sistemas de suporte vital.

Selma não respondeu, mas cumpriu a tarefa rapidamente. Agora Hendrikson estava em órbita do planeta com todos os equipamentos não-essenciais desligados. Somente por um milagre os tolkanders conseguiriam detectar algo tão pequeno como ele.

Após mais alguns minutos as naves tornaram-se visíveis para Hendrikson e aproximaram-se rapidamente do planeta. Em seguida, todas as cem naves entraram em órbita e colocaram-se em posição de espera. Dez minutos, vinte minutos, uma hora, duas horas se passaram. “Eles não fazem nada”, pensou Hendrikson. “O que estariam esperando?”

Naves tolkanders permanecem inativas — disse Selma após Hendrikson solicitar relatório da situação.

Hendrikson já estava começando a imaginar que a espera o deixaria louco de vez quando o inacreditável aconteceu. A poucos milhares de quilômetros, diretamente à frente de sua órbita, surgiu uma esfera luminosa extremamente brilhante sobre o planeta. Hendrikson não precisou de muito tempo para perceber o que aquilo significava.

Uma bolha-hiperespaço, Selma! Será que há um Filósofo nela?

Não há dados suficientes para análise. Contudo devo alertá-lo de que com a presente velocidade e rota nos chocaremos com ela dentro de quatorze minutos e quarenta segundos.

Hendrikson começou a pensar rapidamente. Se ele ligasse os propulsores do SERUN, as naves tolkanders certamente o detectariam. Contudo, as emanações energéticas da bolha eram tão grandes que havia a chance de que ele conseguisse retornar à superfície do planeta sem ser detectado.

Vamos tentar retornar à superfície, Selma! Talvez consigamos chegar lá sem sermos detectados.

A frase seguinte de Selma fez com que o sangue congelasse nas veias de Hendrikson.

Sistemas de propulsão antigravitacional inoperantes. Sistemas de armas inoperantes. Sistemas de rádio inoperantes. Sistemas de suporte de vida decaindo rapidamente. Influências energéticas desconhecidas provenientes da bolha estão interferindo com os sistemas do SERUN. Recomendável...

Um forte chiado demonstrou a Hendrikson que a própria Selma acabara de tornar-se inoperante. À sua frente ele viu o brilho da bolha aumentar cada vez mais, e pensou se ainda estaria vivo quando se chocasse com aquela parede pulsante de energia vinda de outra dimensão.

FIM

César Augusto F. Maciel

16 de Novembro de 1997

Revisão em Agosto de 2017

Imprimir Email

Cafezinho do zap-zap! - Irmãos Siderais

Irmãos Siderais

 

Irmãos siderais de sonhos pedidos
Um voo sem volta olhando o mar infinito
Admirem aquela estrela vermelha
As vidas que a viram mudar de amarelo para enfim pulsar


Saibam ó aventureiros que um dia hei de chegar
Chegarei a amada Terra que um dia fugi me perdendo do lado de lá
Da Galáxia tão fria e vazia que nos portos que aportei
Nenhum me recebeu como os Abraços que aqui há.


Mas se em casa pouso
E escondo minha nau carregada de infinito atrás do paiol
Me pego em noites frias puxando um pé a admirar
como elas lá no alto me piscam suas promessas de amantes distantes


Más jamais esquecidas

Dito Muniz

Cafezinho do zap-zap - Projeto traduções

Belo Horizonte, 24/02/2017

Imprimir Email

A Última Profecia

Trazemos um conto, mais que especial, uma criação de César Maciel, editor-assistente da nova edição brasileira e fã de Perry Rhodan desde 1985! César é um grande conhecedor da série, uma verdadeira enciclopédia viva de PR. Seu primeiro conto aqui no IG será “A Última Profecia”, seu conto finalizado em 1997 e que agora será relançado pelo Projeto Traduções!

 

A Última Profecia

 

Sequência de dados da experiência astrofísica 17 sendo recebida, senhor.

Thanlar de Arnaval, comandante da nave de pesquisa arcônida EXPRESSO DE CRISTAL, olhou com curiosidade para seu subordinado. Apesar da frase dita pelo jovem ser igual às milhares de outras ditas tanto por ele como pelos outros tripulantes da nave nos últimos dias, ela teve em Thanlar um efeito maior do que seria esperado.

É incrível como a rotina pode nos acostumar com tudo, mesmo com os fatos mais inacreditáveis do Universo. Ou dos universos”, pensou Thanlar. “E é mais incrível ainda como tomamos consciência disso nos momentos mais inesperados”.

Ninguém na sala de comando da EXPRESSO DE CRISTAL percebeu o rápido devaneio filosófico do comandante. Todos os tripulantes da nave esférica estavam já há vários dias absortos em suas tarefas científicas, e deveriam concentrar-se ao máximo para aproveitar o pouco tempo que tinham.

A EXPRESSO DE CRISTAL, um cruzador de pesquisa esférico com duzentos metros de diâmetro e tripulação de 300 técnicos e cientistas, entrara há três dias em um outro universo. Somente este fato já seria assombroso, mas ele tornava-se mais incrível ainda pelo fato dela não ter entrado num universo em equilíbrio, como o universo ao qual os arcônidas estavam acostumados. A EXPRESSO DE CRISTAL estava há quatro dias dentro de um universo agonizante.

Tarkan era seu nome. Em apenas seis letras, estava condensado o sofrimento de bilhões de galáxias, sóis, planetas e povos. Este universo encontrava-se naquele momento nos estertores finais de seu processo de contração, que deveria atingir seu ponto culminante nos próximos milênios. Para um universo que já tinha cem bilhões de anos de idade, estar a apenas alguns milhares de anos de seu fim podia ser praticamente considerado como o próprio fim.

Thanlar de Arnaval observava pela tela panorâmica da sala de comando o espaço exterior e admirava-se com a imensidão da Criação. A existência do universo normal, com todas as suas maravilhas e leis físicas únicas, já era um fato digno de contemplação, e a descoberta de outros universos revolucionara a ciência galáctica nos últimos séculos.

Desde o ano 447 NCG, quando abriu-se uma passagem entre o universo normal e Tarkan permitindo a passagem da galáxia Hangay para o nosso universo, pôde-se estudar a estrutura do Superuniverso em detalhes.

Thanlar começou a lembrar-se da história de Tarkan e do Superuniverso. Há dezenas de milhares de anos, a superinteligência ESTARTU abandonou sua esfera de poder no universo normal para auxiliar os kansahariyya, seres de Tarkan que iniciavam um projeto gigantesco: transferir toda uma galáxia para o universo normal antes do colapso final de Tarkan.

Tanto eles como os outros 21 povos da coalizão, organizada para a transferência, prepararam-se para esta tarefa durante milhares de anos, construindo gigantescas estações que deveriam retirar energia do Código de Moral com o objetivo de transferir Hangay para o universo normal.

Contudo esta tarefa, hercúlea por si só, tornou-se mais difícil devido à resistência de HEPTAMER, uma superinteligência de Tarkan que, através da doutrina do Hexameron, levou vários povos a acreditarem que o colapso de Tarkan deveria ser acelerado, para que toda a vida existente nele pudesse se sublimar e atingir a glória suprema. Com isso, a coalizão de povos liderada pelos kansahariyya teve que lutar contra os seguidores do Hexameron, que queriam impedir a transferência de Hangay para o universo normal. Em 448 NCG, cinquenta mil anos após o início do plano, os kansahariyya finalmente conseguiram completar a transferência de Hangay para o universo normal, vencendo a resistência de Heptamer e seus seguidores.

Desde aquela época tornara-se claro para os cientistas galácticos que o universo normal, algum dia, também parará de expandir-se e começará seu processo de contração, repetindo o processo sofrido por Tarkan que, com certeza, repete-se ao infinito com os infinitos universos existentes no Superuniverso. Todos estes universos são esféricos e curvados sobre si mesmos, e repetem o inexorável ciclo de expansão/contração durante sua vida de bilhões de anos. Cada vez mais cientistas estavam convencidos de que todo universo começava com uma grande explosão inicial e passava por um processo de expansão, que, uma vez terminado, levava à contração durante bilhões de anos e o retorno ao estado original de grande densidade.

Thanlar voltou à realidade da sala de comando com o aviso do recebimento dos dados de mais uma sequência de experiências científicas. Ele percebeu que devia concentrar-se mais na rotina da nave e não no brilho avermelhado mostrado na tela panorâmica, que, ao mesmo tempo em que indicava o elevado estágio de contração de Tarkan, despertava-lhe as memórias da incrível história de sua descoberta.

Ele checou a pequena tela do computador embutido em sua poltrona de comando e constatou que toda a nave operava normalmente. Naquele momento, a EXPRESSO DE CRISTAL encontrava-se no ponto do espaço onde outrora estivera a galáxia Hangay, que agora fazia parte do Grupo Local de Galáxias ao lado da Via Láctea e de Andrômeda. A galáxia mais próxima localizava-se a quase trezentos mil anos-luz de distância, e era altamente improvável que a nave fosse detectada por alguns dos povos de Heptamer. Com isso, ele pôde ter segurança para relaxar e prestar atenção ao diálogo de dois cientistas que confabulavam em seus consoles um pouco atrás dele.

A temperatura de fundo já chega a 132 kelvin, o que significa um aumento de 15,4% desde a última medição, há quinze anos disse Almar de Nerkoian, um jovem astrofísico de testa alta e aparência sonhadora.

Daran de Zoltral, um cientista de meia-idade que possuía longos cabelos brancos e movimentos comedidos, completou:

Isto leva à reformulação da teoria de Kanertar sobre a velocidade de contração de um universo com a idade de Tarkan. Passe os dados da experiência AS-17 para meu console e dirigiu-se para seu posto de trabalho, situado a poucos metros de distância.

Thanlar de Arnaval não pôde disfarçar um sentimento de orgulho por sua raça. Há menos de três mil anos, os arcônidas eram seres completamente apáticos e inúteis, acostumados a deixar todas as tarefas físicas e intelectuais a serviço de um gigantesco computador. Os arcônidas daquele tempo não tinham motivação para nada, e passavam os dias vendo imagens abstratas e coloridas em telas de imagem situadas próximas de seus leitos. Contudo, nos últimos séculos, os resultados de um ambicioso plano de revitalização genética da raça começaram a fazer efeito, e, desde trinta anos atrás, podia-se dizer que os arcônidas haviam retornado aos dias de glória do Grande Império. Colônias arcônidas floresciam por todo o aglomerado estelar M-13, e em todos os mundos arcônidas notava-se o anseio da volta àqueles dias de poder e orgulho para Árcon.

Thanlar sentia que o novo século que se iniciava traria a glória de volta para seu povo. Ele olhou para o calendário mostrado no alto da tela de seu computador pessoal. Dez de janeiro de 1200 NCG, 03h12min. “Devemos voltar agora para nosso universo”, pensou ele.

Desde a entrada em Tarkan, em 6 de janeiro, todos sabiam que aquela seria uma missão curta, pois a EXPRESSO DE CRISTAL, por ser uma das naves científicas mais bem equipadas de Árcon, estava sendo requisitada para muitas outras pesquisas na Via-Láctea. Thanlar começou a dar ordens à tripulação para preparar-se para o choque Strangeness1, que deveria ocorrer quando a nave pulasse de um universo para outro. Apesar da tecnologia arcônida ter evoluído muito desde as desagradáveis experiências sofridas nos anos 447/448 NCG, os campos defensivos especiais das naves ainda não haviam sido aperfeiçoados o suficiente para tornar o choque da passagem entre universos menos traumático.

Às cinco horas de 10/01/1200, todos os setores da nave relataram estar preparados para o choque, tendo recolhido todos os instrumentos científicos e estando os tripulantes em prontidão de alerta. Dez minutos mais tarde, após a última checagem dos sistemas da nave e a contagem regressiva, a EXPRESSO DE CRISTAL sumiu de Tarkan, reaparecendo no mesmo instante na Via-Láctea, nas cercanias do aglomerado estelar esférico M-13.

Thanlar de Arnaval e muitos outros tripulantes da EXPRESSO DE CRISTAL perderam a consciência logo após a rematerialização. O choque Strangeness havia sido maior que o esperado, pois os relatórios que começavam a chegar à sala de comando indicavam que quase metade da tripulação havia perdido a consciência. Com o nível de proteção oferecido pelo moderno campo defensivo especial da EXPRESSO DE CRISTAL, seria de se esperar um número bem menor de pessoas inconscientes.

Thanlar foi despertado por um dos medorrobôs que haviam entrado na sala de comando para cuidar das pessoas inconscientes. Após alguns minutos de descanso, ele leu os relatórios que chegavam da nave e decidiu dar ordens a um dos técnicos responsáveis pelo campo defensivo no sentido de revisá-lo o mais rapidamente possível.

Subitamente, Thanlar ouviu um grito de Daran, que estava bem à frente da tela panorâmica observando-a com o rosto pálido como cera.

Thanlar aproximou-se de Daran, que também já havia despertado a atenção de outros tripulantes da sala de comando e que aproximavam-se dele.

O que aconteceu, Daran? perguntou-lhe Thanlar.

Daran respondeu-lhe sem tirar os olhos da tela panorâmica:

— “Quando o último cavaleiro das profundezas morrer, todas as estrelas deverão se apagar...”

Daran olhou para a tela de imagem e viu o inacreditável. As estrelas de M-13 estavam pulsando e vibrando, alternando sua luminosidade em rápidos intervalos. A pulsação parecia diminuir de ritmo com o passar dos segundos, e a luz das estrelas parecia extinguir-se gradativamente. Após um tempo que Thanlar não saberia precisar, as estrelas estabilizaram-se novamente, brilhando fracamente.

Thanlar olhou em volta da sala de comando e viu seus subordinados, apáticos e imóveis. Daran já havia se acostumado ao fenômeno e retornado ao seu console, onde permanecia pensativo. Thanlar dirigiu-se para ele.

Eu me lembro da profecia, Daran disse ele, tentando manter-se calmo mas não creio que a Ordem dos Cavaleiros tenha extinguido durante os últimos quatro dias. Seria possível?

Tudo é possível, comandante. Há pouco estivemos num outro universo, o que seria considerado impossível há séculos atrás e que hoje se tornou rotina para nós.

Thanlar fitou-o pensativamente e voltou a fitar a tela panorâmica. As estrelas estavam com seu brilho estabilizado, mas este era bem menor que o normal. Ao invés do brilho branco-azulado costumeiro proveniente da aglomeração de sóis no centro de M-13, o espaço apresentava-se aos olhos da tripulação da EXPRESSO DE CRISTAL como um grande negrume perfurado por pálidos pontos brancos.

Finalmente Thanlar decidiu agir para conhecer mais sobre o fenômeno, e voltou à sua poltrona de comando. Na tela de seu computador ele verificou o estado da nave, constatando que quase todos os tripulantes inconscientes já haviam se recuperado do choque. Em seguida, começou a dar ordens, todas no sentido de se fazer o mais rapidamente possível um estudo em detalhes do fenômeno com os telescópios e sensores da nave.

Todas as medições preliminares deverão ser feitas dentro de dez minutos, antes da entrada no espaço linear. Devemos rumar imediatamente para Árcon, pois não sabemos qual é a situação reinante em nosso sistema natal. Feltos, você já conseguiu captar alguma mensagem de rádio de alguma nave próxima?

Feltos de Kastar, o rádio-operador da nave, respondeu-lhe:

Não consigo captar nada, senhor. O espaço à nossa volta, pelo menos num raio de cem anos-luz, parece estar vazio.

Tal observação aumentou a preocupação de Thanlar. Normalmente, dentro de M-13, havia um grande fluxo de naves mercantes, cruzadores de batalha e naves de pesquisa, que deveriam estar irradiando comunicados na frequência padrão usada no Império. Mas por quê o espaço estava mudo ao redor deles?

Tente rastrear todas as frequências possíveis, e avise-me de qualquer mudança nas comunicações disse Thanlar.

OK, senhor. Ampliando busca para todas as frequências possíveis.

Após alguns minutos de tensão, no qual as equipes científicas da nave não conseguiam explicar o estranho fenômeno ocorrido com as estrelas e nem Árcon nem as naves que deveriam estar no setor davam sinal de vida, Thanlar decidiu rumar para Árcon o mais rapidamente possível.

Atenção, todos os tripulantes. Entrada no espaço linear em um minuto. Cientistas, terminem suas medições e enviem os resultados para meu console. Navegador, preparar para entrada no espaço linear.

Após um minuto, a EXPRESSO DE CRISTAL entrou no espaço linear e começou a acelerar em velocidade ultraluz. Contudo, após exatos dois minutos de aceleração, às 05h33min de 10 de janeiro, o mundo pareceu desabar para a nave e sua tripulação.

A EXPRESSO DE CRISTAL saiu do espaço linear e voltou para o espaço normal, sem que nenhum comando fosse dado nesse sentido. Em seguida, todos os computadores sintrônicos da nave pararam de funcionar, bem como todos os aparelhos que funcionavam em base pentadimensional. A tripulação só não morreu esmagada contra as paredes devido ao desligamento brusco dos neutralizadores de pressão graças aos sistemas secundários, que, por terem sua base de funcionamento semibiológica e semipositrônica, não foram afetados pela falha nos sistemas 5-D.

Relatório! gritou Thanlar para o navegador.

A nave saiu do espaço linear devido a motivos desconhecidos. Todos os sistemas 5-D da nave perderam sua eficácia. Os instrumentos indicam que eles continuam funcionando, inclusive o conversor linear, mas eles parecem não ter mais nenhum efeito no hiperespaço. No momento, os sistemas secundários estão mantendo os sistemas de suporte de vida e os campos defensivos.

Thanlar estava paralisado pelos acontecimentos. Primeiro, o estranho brilho das estrelas e o silêncio nas comunicações, e, agora, o colapso dos aparelhos de base 5-D. Tudo isso tinha que ter uma ligação entre si – será que a velha profecia estava realmente se concretizando? A angústia começou a tomar conta de seu íntimo, ao perceber que a base de toda a tecnologia não só dos arcônidas como dos outros povos galácticos baseava-se nos computadores sintrônicos – campos de energia pentadimensionais, nos quais a troca de informações era feita de forma completamente imaterial. Era um sistema infinitamente mais rápido e eficiente que o dos computadores positrônicos, mas que agora revelava suas fraquezas.

Thanlar começou a verificar os dados que encontravam-se na tela de seu computador pessoal. Devido ao pouco tempo que tiveram para analisar os fenômenos relativos às estrelas, a equipe de astrofísica da nave não conseguira chegar a nenhuma conclusão sobre os acontecimentos. Thanlar suspeitava de que eles não chegariam a nenhuma conclusão produtiva com a nave naquele estado, inoperante e presa no vazio interestelar, a dezenas de anos-luz da colônia arcônida mais próxima.

Thanlar decidiu que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para salvar a nave, mas sentiu que o desespero já começava a invadir sua mente.

Durante quinze dias, a tripulação da EXPRESSO DE CRISTAL fez todo o possível para explicar os estranhos fenômenos e encontrar uma maneira de tornar os sistemas 5-D novamente eficazes, mas nenhum de seus esforços teve êxito. A tentativa de comunicação por hiper-rádio com outras naves ou planetas próximos revelou-se totalmente inútil, e constatou-se que uma mensagem de rádio normal levaria anos para chegar à colônia arcônida mais próxima.

Naquele momento, a tripulação da nave já havia acostumado-se à sua nova rotina e tentava fingir que nada havia mudado. Na realidade, quase nada mudara dentro da nave – somente os aparelhos 5-D haviam perdido sua eficácia completamente. As escalas de trabalho e descanso da tripulação haviam mantido-se as mesmas, bem como tudo que se referia à vida dos tripulantes.

Contudo, ninguém conseguia esquecer que a nave vagava pelo espaço em velocidade subluz, e que levaria anos para levá-los a qualquer lugar que pudesse ser chamado de lar.

Thanlar de Arnaval dirigia-se à cabine de Daran de Zoltral. Thanlar acabara de participar de uma reunião de rotina com os técnicos responsáveis pelo conversor linear, que continuavam afirmando não haver nenhum problema com ele. Contudo, ele não exercia mais nenhum efeito no contínuo espaço temporal, e Thanlar ordenou-lhes que continuassem a pesquisa para tentar descobrir um meio de torná-lo operacional novamente. A cada minuto que passava, crescia em Thanlar a sensação de que ele nunca mais veria Árcon novamente.

Thanlar chegou à porta de entrada da cabine de Daran e tocou a campainha. Daran abriu a porta segundos depois, e convidou-o para entrar.

Comandante! É sempre um prazer vê-lo em meus modestos aposentos. Por favor, sinta-se à vontade.

Thanlar anuiu e sentou-se numa poltrona confortável, enquanto Daran buscava dois copos de uma bebida alcoólica suave muito apreciada pelos arcônidas. Normalmente o uso de álcool era proibido a bordo das naves do Império, mas tal regra nunca era muito aplicada em relação às bebidas suaves. Além do mais, desde o fatídico 10 de janeiro, todos os tripulantes não estavam mais tão presos a regulamentos como antes.

A que devo a honra de sua visita, comandante? disse Daran, enquanto esperava Thanlar ter a honra de sorver o primeiro gole de seu copo.

Pensamentos, Daran disse Thanlar, após observar pensativamente por alguns segundos o líquido avermelhado de seu copo pensamentos que não me saem da cabeça.

Pode me dizer, velho amigo. Você sabe que não temos segredos entre nós.

Thanlar sorriu. Daran fora seu professor na Academia Espacial de Árcon, e, desde aquela época, desenvolvera-se uma forte amizade entre o velho professor e seu aluno preferido. Ao longo dos anos, esta amizade fora reforçada pelo fato de ambos servirem nas mesmas naves primeiro na LARSAF e, depois, na EXPRESSO DE CRISTAL.

Daran começou ele todos temos observado nas últimas décadas os movimentos nacionalistas que têm emergido tanto em Árcon como nas diversas colônias do Império. Todos falam do destino de Árcon na Galáxia, na volta aos tempos de glória e conquista do antigo Grande Império.

Ele fez uma pausa para beber um pouco mais do líquido em seu copo.

Não sei se você já percebeu continuou ele —, mas sinto a ambição pelo poder em todas as esferas do poder estatal, desde os funcionários burocráticos até o trono. Todos apoiam as ações dos extremistas, que conquistam e anexam mundos brutalmente para cravar neles a bandeira do Império.

E onde você quer chegar, Thanlar? disse Daran, num tom de voz que fez Thanlar pensar que ele já soubesse a resposta à sua pergunta.

Eu quero dizer que nosso povo tem muito orgulho de seus feitos do passado e de sua recuperação biológica, política e social tem orgulho em excesso de tudo isso. Daran, não deveríamos ser gratos pelo fato de estarmos explorando o Universo novamente e não vegetando como nos tempos do grande cientista Crest?

Será que este fenômeno que afetou o hiperespaço está ocorrendo apenas em M-13, como muitos de nossos cientistas supõem, apenas como uma forma de nos punir pela nossa soberba? Não deveríamos ser mais humildes em relação às nossas próprias capacidades?

Daran pensou por um momento e disse:

Caro amigo Thanlar... eu tenho tido pensamentos semelhantes nos últimos dias, e confesso-lhe que eles têm sido realmente fortes. Penso especialmente em um de meus antepassados, Thora de Zoltral, a comandante da nave de pesquisa que fez o primeiro contato com os terranos. Durante boa parte de sua vida ela foi altamente arrogante em relação aos terranos, os quais considerava bárbaros subdesenvolvidos. Entretanto, alguns séculos após sua morte, descobriu-se que, na verdade, nós éramos descendentes dos lemurenses, os ancestrais dos terranos. Todos os arcônidas ficaram profundamente abalados por esta descoberta, e imagino como Thora não se sentiria se descobrisse que o povo que ela desprezou por tanto tempo era na verdade o povo que havia dado origem aos arcônidas! Também não nos esqueçamos do triste destino que afeta os povos do universo Tarkan e que um dia dizimará a todos em nosso universo, quando seu tempo tiver chegado ao fim. Creio que possamos todos tirar algumas lições destas histórias, Thanlar.

Thanlar pensou um pouco e respondeu a Daran:

Sim, meu amigo. Creio que a arrogância e a soberba tenham sido parte de nossa raça por muito tempo, tanto no passado como agora, e que devamos aceitar o fato de que somos simples arcônidas, apenas uma pequena peça no intrincado jogo da Criação.

Também é o que sinto, Thanlar, e gostaria que soubesse que, voltando ou não a Árcon, eu nunca me esquecerei desta nossa conversa disse Daran, bebendo os últimos resquícios de sua bebida.

Nem eu, meu amigo respondeu-lhe Thanlar, fitando a pequena tela que mostrava a pálida luz das estrelas do outrora majestoso aglomerado M-13, ao mesmo tempo em que tinha a certeza absoluta de que nunca mais voltaria para casa.

 

FIM

 

César Augusto F. Maciel

Novembro de 2007

Revisão em Março e Abril de 2017

1 Nota: choque de estranheza.

Imprimir Email

Cafezinho do zap-zap! - Reclamação

Reclamação

 

No zap-zap, Reclamo!

Pela coerência, Clamo.

Porém, ao fim do dia estou no mesmo Vamo-que-vamo.

 

Ainda que fizesse, Esparramo.

Mas não faço, e continuo Infamo.

Para alma, acaso tenho um Cânhamo?

Quem sabe mudada, Declamo.

 

Com esse discurso, Exógamo.

Mudaremos para atitudes de Transformação.

Márcio Inácio

Cafezinho do zap-zap - Projeto traduções

Belo Horizonte, 23/02/2017

Imprimir Email

O Clone

Neste mês trazemos um conto “resgatado” da lista de Perry Rhodan no Yahoo… Antes que o Yahoo acabe definitivamente… Esperamos que gostem e que esse conto tenha ficado ao agrado do autor, Claudiney Martins, que infelizmente não conseguimos contato…


 

O Clone

Em um antigo planeta arcônida, durante o segundo ciclo.


 

Personagens principais deste conto:

Perry Rhodan – Administrador Geral do chamado Império Solar da Humanidade

Gucky – Um alienígena de um pouco mais de um metro, parecido com um rato e com um único dente que lembra um castor. É um dos mais poderosos aliados da Humanidade. Tem os poderes de telepatia, telecinese e teleporte. É muito brincalhão.

Arcônidas – Raça alienígena que já teve um gigantesco império onde a Terra foi uma colônia. Hoje é decadente e governada por um gigantesco cérebro positrônico.

Aras – Raça descendente dos arcônidas e inimiga da Humanidade. São especialistas em medicina.


 

Quanto tempo demorara? — perguntou o capitão Larry Kerkov. Homem alto e forte. Sentia-se completamente desconfortável no interior daquele túnel de pedras.

Além do aperto, eles tinham que utilizar o traje espacial completo, pois a tênue atmosfera do planeta não era respirável, além de ser quente demais. Estavam à sombra, no subsolo de uma pequena montanha, mas a temperatura externa passava dos sessenta graus.

Creio que uns vinte minutos. — respondeu Jean Clidows. Sujeito falastrão de estrutura frágil. Suas pernas e seus braços longos davam a impressão de completo desalinho, o que não era de todo errado. O sujeito era desastrado em seus movimentos e os óculos que usava não ajudavam na aparência.

Jean Clidows era tenente e semimutante, isto é, um mutante de poderes não muito fortes, mas que estavam sendo aproveitados na Frota Solar como membros dos Grupos de Operações Especiais, o GOPE. Formavam-se estes grupos com o objetivo de liberar os integrantes do Exército de Mutantes para operações supostamente mais importantes.

Vou verificar se tem alguma armadilha de quinta dimensão — continuou o semimutante.

Larry ficou observando enquanto Jean se concentrava e virava o seu rosto com os olhos fechados em direção à parede metálica de uma antiga base. Como o semimutante havia lhe descrito, naquele instante ele enxergava os campos de quinta dimensão. Tudo aparecia como em raio-X, mas em cores verdes e em uma semitransparência na mente do mutante, até uma distância aproximada de quinze metros. Eram os hipercampos que todos os materiais possuem, mas as máquinas que a utilizam concentram em tal quantidade que elas aparecem em tonalidades de amarelo a vermelho para Jean.

Cansou de observar o trabalho do tenente. O capitão Larry já o tinha visto em ação inúmeras vezes nos treinamentos e virou para os outros dois integrantes do 13º GOPE. Miguel Lourenzo era um sul-americano de feições indígenas; atarracado, forte e dono de uma personalidade extremamente prática. Sempre bem disposto e bem humorado. Nunca discutia uma ordem dada, mas volta e meia dava sugestões que surpreendiam pela perspicácia. Fora ele que descobrira o túnel na montanha que os levara até a parede da base Ara.

Jordan Tegon era um francês enorme e muito forte. Maior que o capitão, fazia figura cômica naquele apertado túnel. Não tinha uma inteligência invejável, mas sua pontaria era certeira. O capitão resolveu convocá-lo para o GOPE, pois além desta qualidade ele tinha duas condecorações por atos heroicos.

Temos uma máquina a cinco metros à direita — disse Jean, ainda concentrado. — Ela trabalha com hiperenergia, não parece ser uma armadilha. No nível abaixo vejo alguns campos hiperenergéticos, mas estão quase fora do meu alcance. A parede não apresenta nenhum sinal de hipercampos.

As informações de um semimutante nem sempre eram confiáveis. O capitão Larry Kerkov era o responsável por tomar as decisões a partir delas. Se confiasse nas informações do tenente, poderiam abrir um buraco na parede da base para invadi-la. Isto se aquela parede fosse mesmo da base e não alguma outra construção, já que caminhar por cavernas apertadas poderia deixar o indivíduo desorientado. Depois de entrarem na base ara, provavelmente acionando algum tipo de alarme, eles teriam que descobrir o laboratório onde supostamente a raça descendente dos arcônidas, especialista em medicina e afins, estava tentando clonar uma importante personalidade do Império Solar da Humanidade. Os aras haviam conseguido um pedaço de tecido desta pessoa, mas ninguém sabia de quem. A primeira missão do grupo tinha uma importância vital para o Império. Entretanto havia outro problema.

Prestem atenção — solicitou Larry. — Temos pouco mais de uma hora de oxigênio. Vocês sabem que é justamente o suficiente para chegarmos ao local de encontro dois onde uma nave de apoio nos recolherá. Contudo, fui designado para uma missão e pretendo cumpri-la, apesar da pouca possibilidade de sucesso. Não peço, muito menos ordeno que me sigam. Pelo contrário, estou liberando oficialmente todos da missão, para que salvem suas vidas. Para os que resolverem me acompanhar não posso prometer nada, apenas dar a escassa esperança de, uma vez encontrado o laboratório, identificado e roubado a amostra de tecido, buscarmos tanques de oxigênio ou mochilas recicladoras aras para termos ar respirável e desta maneira alcançarmos o ponto de encontro três.

Estou com o senhor, chefe — falou Miguel de imediato. Como sempre o mais espontâneo.

Vocês não iriam longe sem os meus poderes — disse sorrindo o semimutante e sem dar tempo, virou para Jordan e perguntou: — E você, João Grandão? Vai ou não vai?— E você, João Grandão? Vai ou não vai?

O francês não respondeu. Ou melhor, respondeu com ação. Levantou o pesado fuzil energético e apontou para a parede da base. Jean, que estava entre a arma de Jordan e seu alvo, moveu-se com uma agilidade que surpreendeu Larry, posicionando-se atrás do grupo. Vinte minutos depois uma lufada de ar soprou em direção ao grupo erguendo poeira no túnel. Um buraco de meio metro de diâmetro tinha sido aberto na parede. Sem perda de tempo, Jordan forçou seu grande corpo pela pequena abertura. Miguel foi em seguida e Larry deixou Jean por último. Era a ordem que sempre seguiam nos treinamentos e agora era posta em prática pela primeira vez. A manobra tinha a intenção de preservar a vida do integrante especial do grupo.

Larry quase foi atropelado por um robô de manutenção que se apressava a chegar ao buraco aberto na parede. Ele escutou pelos alto-falantes de seu capacete o sinal que sabia ser de alarme. Não demorou muito e começaram aparecer os robôs de guerra que deviam fazer a vigilância da base. Sem tempo a perder, ele deu a ordem de avançar pelo longo corredor que estavam. Seguindo o padrão militar de avanço e cobertura, tendo sempre à retaguarda o tenente Jean, eles avançaram rapidamente, graças também a falta de organização dos robôs de guarda aras que atacavam individualmente. Logo os robôs cessaram o ataque e recuaram. Aparentemente tinham notado que seu contra-ataque era infrutífero e resolveram se agrupar antes de atacar novamente. Eles não usavam armas pesadas, provavelmente para não destruir as instalações.

O capitão Larry não perdeu tempo.

Jean, veja o que tem abaixo de nós — ordenou. — Miguel, tente abrir uma das portas. Os robôs de manutenção já fecharam o vazamento de ar e as portas já devem estar liberadas.

Logo Jean forneceu o seu relatório: — Muitas máquinas trabalhando com hiperenergia. Devem ser os geradores da base.

Muitas máquinas trabalhando com hiperenergia. Devem ser os geradores da base. — Ótimo — disse Larry. — Se os geradores estão logo abaixo de nós, estamos no andar principal da base, já que os aras têm o costume de construírem suas bases com os geradores por baixo e os laboratórios principais no piso imediatamente superior.

Enquanto Jordan, deitado no chão, dava certeiros tiros nos robôs que avançavam agora em bloco, Larry entrou no laboratório que Miguel Lourenzo havia aberto. Ele mantinha três cientistas aras sob a mira de sua arma. Logo os aras foram trancados em armários, não sem antes apontar, após ameaças nada sutis, onde ficava o laboratório de clonagem.

Avançaram até a porta do laboratório indicado que ficava bem próximo. Miguel e Jordan se deitaram no chão atirando sem cessar nos robôs que não se importavam com as terríveis perdas que estavam tendo. O ar do corredor foi ficando escuro e irrespirável e os terranos tiveram que fechar seus trajes novamente. Jean e o capitão Larry entraram no laboratório procurado.

Como vamos encontrar a amostra de tecido neste mar de armários? — perguntou Jean embasbacado. — Temos alguma ideia do que temos que encontrar?

Procure nos refrigeradores por um recipiente retangular transparente — respondeu o capitão já com as mãos na obra.

Os minutos foram passando e a luta fora do laboratório foi tornando-se mais dura.

Como está aí fora, Miguelito? — perguntou Larry pelo rádio.

O capitão era o único que o boliviano permitia chamá-lo daquele jeito, mas sentia-se desconfortável da mesma forma.

Podemos segurar mais uns minutos — respondeu o sul-americano —, então teremos que recuar ou usar granadas.

A busca continuou com mais pressa. Alguma coisa incomodava Larry naquela história toda. Se ele tivesse tempo para pensar... Mas tinha que procurar com rapidez nos inúmeros refrigeradores do laboratório. Jean tinha passado para uma sala ao lado e o capitão torcia que ele tivesse mais sorte.

Ratos me mordam, capitão! — berrou pelo rádio o semimutante. — O senhor não vai acreditar no que eu encontrei! E também não vai gostar nem um pouquinho.

Fale logo, homem! Encontrou o tecido?

Mais do que isto, capitão. Encontrei um ser clonado inteirinho e duvido que o senhor adivinhe de quem era a "fôrma" que estávamos procurando.

O comandante do primeiro GOPE estava a ponto de perder a paciência com o tenente, porém se esqueceu de qualquer reprimenda que pretendia dar ao ver o ser dentro de um tubo transparente.

Essa não! — disse Larry apenas.

O que vamos fazer, chefe? Já pensou se os aras conseguirem uma aberração desta? Um Gucky amigo já é um problema, imagine um como inimigo?

Não temos como levar o clone. Vamos destruí-lo com os fuzis, armar as bombas e cair fora. De qualquer forma já sabemos de quem eles possuem o tecido. Atire nele enquanto armo as bombas que destruirão a base.

Jean mirou na cabeça do clone que estava dentro do tubo transparente. Por um momento achou que o nariz do clone de Gucky tinha mexido, intrigado, baixou a arma e olhou. Sua mente devia estar lhe pregando uma peça. Voltou a mirar e quando pensou em atirar o clone abriu os olhos. Jean não conseguiu evitar a surpresa e acabou dando uns passos para trás e esbarrando no capitão que, abaixado, jogava uma das bombas sob uma bancada.

Cuidado tenente!

Senhor, o bicho está vivo!

Larry sentiu tensão na voz de Jean e levantou-se verificando que os olhos do clone estavam abertos.

Atire! — berrou ele.

Jean atirou quase que de imediato, mas foi em vão. O rato-castor clonado piscou um dos olhos e sumiu. Um barulho alto de estouro de espumante se fez ouvir, quando o ar preencheu o espaço que o clone estava, no mesmo instante que o raio da arma de Jean atingia o local.

Droga, tenente! — berrou o capitão. — Você demorou! Agora a nossa chance é que as bombas destruam este local e levem o clone do Gucky junto.

Antes de saírem da sala, armaram mais algumas bombas, mais do que suficiente para destruir toda a base. Esconderam-nas o suficiente para dificultar sua localização. Do lado de fora, lançaram uma granada explosiva que destroçou o laboratório e tornou quase impossível localizar as bombas a tempo de desarmá-las. Desta maneira, garantiram que a base iria pelos ares.

No corredor, as coisas estavam pretas, literalmente. Miguel e Jordan tinham começado a usar as granadas e não se via os robôs devido a fumaça negra que tomava conta de tudo. Recuaram sem muitos problemas até o ponto onde haviam entrado. O remendo feito às pressas pelos robôs de manutenção era mais fraco que a parede e Jordan não levou cinco minutos para abri-lo novamente. Sem dificuldades, saíram da base e percorreram a caverna de volta até sua saída. Substituíram suas garrafas de ar pelas que pegaram na base e que, por terem o mesmo encaixe das garrafas dos arcônidas, podiam ser usadas sem problemas de conexão.

Muito bem — disse o capitão Larry. — Vamos afastar-nos o mais rapidamente possível da base. A explosão será grande.

Falar era fácil, mas movimentar-se rápido em uma gravidade baixa era um problema. Eles tiveram que desligar os gravitadores, pois a temperatura externa sob o sol estava acima de 150 graus centígrados, o limite que suportava o traje espacial. Desta maneira economizavam energia que podia ser aproveitada para refrigerar o interior. Mesmo assim, a temperatura interna atingia o incômodo patamar de 48 graus, o que tornava a respiração um ato de autoflagelação. Pelo mesmo motivo não haviam trazido as mochilas de voo. Tinham que percorrer dez quilômetros para chegar ao local de encontro, mas antes teriam que se proteger da explosão. Ela jogaria boa parte da montanha na qual a base estava encravada para os céus. O risco que um grande pedaço desta montanha caísse em cima deles não era desprezível.

Com um olho no terreno e outro no cronômetro, eles avançaram. O cansaço os atingiu quase que de imediato, quando ainda estavam a poucas centenas de metros da caverna da qual haviam saído. A água era consumida em grandes quantidades, na esperança que ela pudesse fazer o que o sistema de refrigeração não conseguia. Quando faltava menos que um minuto, Larry dirigiu o grupo para uma cratera pequena e profunda, que podia oferecer alguma proteção. Ele não se enganou, pois sabia que estavam muitos próximos da base e o grupo corria o risco de ser atingido pelos destroços.

Depois de se acomodarem em uma das encostas da cratera, Larry passou a informar o tempo restante para a explosão.

Faltam vinte segundos!

Eu queria que a minha água estivesse mais fria — comentou Jean.

Silêncio.

Faltam quinze segundos!

Que calor — reclamou Jean.

Dez segundos. Nove...

Um movimento na borda da cratera. Antes que os quatros terranos tivessem tempo de olhar para cima um objeto rolou encosta abaixo. Para o espanto de todos eles reconheceram o objeto imediatamente: uma das bombas armadas na base ara.

Sete. Seis...

O pavor foi ainda maior quando notaram que a contagem regressiva era agora feita por um pequeno ser. Ele estava na borda da cratera e lançara a bomba para dentro dela. Apesar do traje espacial a figura era bem conhecida.

Gucky!! — disseram todos.

Na verdade o clone dele que ironicamente terminava a contagem.

Quatro. Três. Tchau, tchau.

Com a teleportação do clone do rato-castor, os olhos do grupo se voltaram para a bomba no fundo da cratera. Nunca se soube o que os demais pensaram naquele instante, mas Larry se lamentou de falhar logo na primeira missão e fechou os olhos em uma defesa instintiva totalmente inútil.

Demoram alguns segundos para notar que não haviam morrido. A bomba não explodira. Larry foi o primeiro a recuperar o controle de si.

Todos para fora da cratera! — berrou ele. — Rápido!

Em poucos segundos passavam por sobre a borda para darem de cara com um rato castor de olhos arredondados brilhantes e dente solitário a amostra pelo visor do capacete. Uma clara indicação que ele se divertia muito com tudo aquilo.

Os quatro homens pararam imediatamente. Jean e Jordan ergueram suas armas e apontaram para o rato-castor que não conseguiu mais conter a gargalhada.

Baixem suas armas — ordenou Larry.

Você está louco — protestou Jean. — Temos que matar o clone.

Ouça o capitão, tenente — disse o rato-castor em meio às risadas que aos poucos foram parando. — Ele já entendeu o que aconteceu.

Eu também — falou o tenente semimutante, sem baixar a arma. — Não sei como você descobriu as bombas e as desarmou. Mas agora quer brincar conosco antes de nos entregar para os aras. Porém, não vou servir de cobaia para estes açougueiros galácticos.

Tentou apertar o gatilho, mas ele não se mexeu. O rato-castor segurava a alavanca de disparo com sua telecinese.

Pare com isto, tenente Jean — ordenou novamente o capitão. — Deixe o tenente Gucky explicar.

Obrigado Larry. Como você já descobriu tudo não passou de um teste para medir a determinação do grupo antes de colocá-los realmente em serviço ativo. O clone na verdade não era ninguém mais do que eu mesmo em brilhante atuação, não acham? Para que não haja confusão eu vou repetir: não existe nenhum clone e tudo não passou de um teste. Os aras da base eram robôs, a base ara é uma antiga base arcônida há muito tempo abandonada. Estamos no planeta Porta do Inferno, que hoje é um posto avançado do Império Solar e não em um planeta deste povo. Posso adiantar que vocês passaram no teste e espero por vocês na nave IGARA que está pousando no ponto de encontro. Vamos comemorar com muito suco de cenoura. Eu pago. Espero por vocês lá.

Gucky se teleportou. O cruzador ligeiro IGARA já descia no planeta. Jean e Jordan estavam ainda boquiabertos com tudo o que o rato-castor havia dito, mas ele não tinha terminado ainda. Reapareceu na frente do grupo, o que fez com que Jean e Jordan erguessem instintivamente seus fuzis mais uma vez. Gucky falou com o seu grande dente roedor se destacando:

Espero principalmente o senhor, tenente Jean. Quero que me explique o que quis dizer com "um Gucky amigo é um problema" e a sua definição da palavra "aberração".

Jean engoliu em seco e não pode dizer nada em sua defesa, pois Gucky já havia desaparecido.

Vamos logo pessoal — animou-se Miguel Lourenzo. — Talvez o capitão da IGARA libere alguma cerveja para a nossa comemoração.

Acho difícil — comentou o capitão Larry. — Teremos mesmo que nos contentar com o suco de cenoura do Gucky.

Os quatros componentes do 13º Grupo de Operações Especiais se encaminharam na direção da nave que pousava. Quase todos não viam a hora de chegarem na IGARA, tirarem seus trajes e respirarem ar fresco. Mas um deles caminhava um pouco mais devagar, sem pressa de chegar à nave e surpreendentemente quieto. A verdade é que nas próximas horas a vida não seria nada fácil para o tenente Jean Clidows.


 

FIM


 

Claudiney Martins

Abril de 2006

Imprimir Email

Cafezinho do zap-zap! - Falta

Falta


 

Falta Colaboração

Falta Integração

O que não falta é Deterioração.


 

Mas, ainda bem que não falta Reiteração.

Por que, na falta de Superação.

O que seria de nossa Consagração?


 

Agora não falta Proliferação.

O que falta é Interação.

Quem sabe um dia não faltará Cooperação.

 

Márcio Inácio

Cafezinho do zap-zap - Projeto traduções

Belo Horizonte, 23/02/2017

Imprimir Email

O Contador de Histórias - Uma Jovem Colônia Americana

Trazemos o final do conto do integrante Antônio João Ângelo, O Livre-pensador (Josué). A sexta parte d´O Contador de Histórias. Esperamos que gostem e que esse extenso conto tenha incentivado a todos colaborarem com nosso informativo.

 

Uma Jovem Colônia Americana


 

Ele contou então a sua aventura. Foi um monólogo tenso para todos nós, mas ao que parecia era um pouco divertido para ele.

Tudo começou no ano de 1650, quando a ainda jovem colônia inglesa dava os seus primeiros passos na América do Norte. E muitos foram os colonos que ali aportaram para iniciar uma nova vida, naquela terra inexplorada.

Foi nesta jovem América que uma família cheia de energia e esperança se estabeleceu. No lugar onde hoje é o estado da Filadélfia.

Era uma família típica de pioneiros: jovens, fortes e felizes com o sonho de um futuro melhor. Tinham uma única filha, uma garota igual a tantas outras, mas com algumas peculiaridades: ser muito bonita, mas parecia pouco afeita aos serviços domésticos. Não que fosse preguiçosa, mas para uma simples camponesa todos achavam estranho que ela dedicasse tanto tempo embelezando-se com tanto esmero.

Como não possuíam espelhos de boa qualidade, não era difícil encontrar a jovem Mory durante horas sentada na margem de plácidos lagos. Ela parecia embevecida, hipnotizada, com a sua imagem refletida pelas águas.

Poderíamos defini-la como uma narcisista, que é uma pessoa obcecada com a sua própria imagem.

Quando ela tinha cerca de vinte anos aproximadamente, aconteceu a tragédia que iria mudar para sempre a vida desta jovem.

O costume de manterem um lampião aceso durante toda a noite provocou o incêndio de sua pequena casa e mutilou o rosto da jovem Mory terrivelmente. A partir daquela data, Mory perdeu a vontade de viver. Apenas a recordação do seu belo rosto a consolava. Com o passar dos anos a sua autoimagem mental foi perdendo nitidez, e a tristeza virou sua companheira por toda vida. E como iria perceber, para além dela.

Em alguns momentos especiais, a sua angústia era indescritível. Por fatalidade ou não, foi num destes estados de profunda tristeza que ela morreu. Tinha apenas quarenta e sete anos.

Mas a sua obsessão pelo belo a escravizou e não permitiu a liberdade da sua alma.

Por uma pequena eternidade ela ficou a vagar, procurando ajuda para sua tristeza infinita. Jamais encontrou a sua merecida paz. Desejava com todas as suas forças, resgatar a sua lembrança de beleza.

Foi com este objetivo que Mory veio até nós. Precisava de ajuda, e eu como por acaso topei com uma solução. Ela percebendo a sua chance e me enviou através da sua triste memória.

Viajei através das suas fragmentadas e nebulosas lembranças. Vivi e senti seus bons e maus momentos. E um certo dia vislumbrei a sua jovem e bela face, refletida nas águas de um rio. Retornei de seu passado e com a imagem gravada em minha mente eu lhe pintei o rosto.

Mory finalmente após séculos de angústia vai poder seguir em frente, afastar-se da nossa realidade. Agora ela carrega consigo algo para adorar, a sua querida imagem a muito esquecida.

No entanto, a partir de agora e depois de tanto sofrimento, reconhece que aos poucos terá de libertar-se desta adoração, mas até lá terá paz. Um dia compreendera o quão pouco deve ser supervalorizado qualquer bem material, incluindo aí o próprio corpo. Deverá sim, reger as suas ações pelo bem comum, e amar em espírito a todos os seres vivos como parte de Deus. Sem levar em conta a sua forma, cor ou espécie.

Passados alguns segundos de imobilidade e mutismo, o meu pai perde novamente a consciência. Enquanto isto, Mory nos observava sorrindo e ficando transparente. Por fim, desaparece diante de todos nós.

Por um instante a máscara paira no ar, depois, subitamente despenca em direção ao solo e fragmenta-se em milhares de pedaços. O súbito barulho nos faz despertar deste aparente sonho, e logo em seguida papai recobra a consciência.

Minha mãe vai até ele, e procura saber mais detalhes. Mas sem aparente resultado.

O que está acontecendo Rosa, eu só me recordo de chegar bem perto do fantasma e nada mais. Aconteceu mais alguma coisa? – Pergunta papai.

Mamãe nos faz um sinal, e não voltamos a tocar no assunto.

Durante a tarde, neste mesmo dia, ele começou a pintar um novo quadro. Uma pintura que guardo com carinho até os dias de hoje. Nesta tela, uma rústica janela aberta com um fundo negro e bordas cor de sangue, tem no centro uma figura branca e esvoaçante a nos acenar.

Quando perguntamos assustados, o significado daquela imagem, ele não soube o que dizer, e ficou intrigado. E jamais voltamos a comentar este assunto com ele.


 

***


 

Em meio ao silêncio da noite fria, a minha Marly intervém.

Bem meus filhos, terminou por hoje. Josh querido, vamos dormir.

Quanto a minha família, eu desconfio de que vão precisar de mais algumas horas para pegar no sono.

Observo com um certo ar de satisfação que, em vez de se levantarem, todos estão com o olhar fixo através da janela que dá para o interior da sala de estar. Mais precisamente, em um ponto logo acima da lareira. Eles observam, estarrecidos e um tanto assustados, o quadro pintado por meu pai há tantos anos.

Então eu apago o meu cachimbo, bato com ele numa pilastra da varanda para limpá-lo e levanto, sentindo as costas doloridas. Dou um suave beijo nas faces da minha vida e vamos dormir com um sorriso nos lábios.

E penso, com uma certa culpa, hoje eu vou desculpá-los por irem dormir sem me pedirem a bênção.


 

FIM

 O Livre-pensador (Josué)

Imprimir Email

Login

A Chave secreta é necessária somente se você habilitou o Google Autenticador em seu perfil.